Navegando no Cotidiano By Luciana Santa Rita / Share 0 Tweet “O mundo quebrará seu coração de dez maneiras diferentes, isso é uma certeza. E não posso começar a explicar isso. Há loucura dentro de mim e dos outros, mas adivinha? Domingo é o meu dia favorito de novo. Penso em tudo que todos fizeram por mim. E me sinto um cara muito sortudo”. (Pat Solitano Jr. – Bradley Cooper no filme o Lado Bom da Vida) Era um sábado de verão de prévia carnavalesca. Os ambulantes se preparavam no meio da madrugada para um dia de glória financeira. O tumulto dos foliões ansiosos já acompanhava o conflito dos enredos musicais de alguns carros alegóricos. O sol estava forte e o calor infernal. Os carros apressados assustavam as famílias que caminhavam guiadas pela redescoberta dos carnavais de infância. No contraponto, o mar, ao lado, não apresentava ondas. E, livre de superstições, havia um grupo de mulheres sorridentes, com semblantes vultosos sobre cada passo em busca da vida que valia a pena, mesmo encobertas por fantasias que terceiros justificariam como a dor do cotidiano. Não se importavam com a chegada de músicas desconhecidas e muito menos no que iam perder se existissem dificuldades ao lidarem com elas mesmas. Podia-se duvidar se suas fantasias eram reais, mas quais seriam as verdadeiras, diante de uma vida que já foi vivida pelo outro. E, assim, com segurança em si mesmo, atravessavam a avenida com suas faces. Talvez houvesse mais de uma fantasia. Mas não era aquele o momento para se inquietarem. Estavam felizes por não usarem máscaras. Nos olhos daquelas mulheres já existiam dias melhores. Bastava o sentido que cada uma criava para a sua existência naquela avenida. Em seus sonhos de carnaval, os segundos não se se arrastavam mais no relógio da cozinha. Acreditavam na promessa do fim da insônia, de alcançar a simplicidade nas palavras ou mesmo de ser a única razão de viver de alguém. Era um dia diferente. Brincavam de serem as deusas do tempo, amantes de Apolo que surgia como o deus da música, tocando a sua lira para o deleite dos imortais. Possuíam a coragem de dançar sozinha na multidão e inspiravam a crônica de um poeta que apenas as observava. Possuíam total desprendimento até para andarem descalças, momento visível quando a sapatilha de uma delas rasgou. Eram capazes até de se desnudarem em uma entrevista para a imprensa local. Não tinha receio da quarta-feira realidade. Aquelas mulheres já tinham tido outros momentos felizes; eram sem dúvida, bonitas, cultas, malhadas, viajadas, realizadas em suas profissões e com sonhos constituídos. Mas havia os cacos que feriam os seus corações e eram visíveis, assim como as camadas erradas de suas escolhas. E, assim, entravam na avenida tentando dar sentido às alegorias. Buscavam a vida e seguiam, ou quem sabe privilegiavam o tempo, alforriando-o de si mesmo. Construíam novas paredes para um novo dia, sem a exatidão do recomeço seguro. Eram mulheres dispostas a alcançar a felicidade que se autodenominava como uma loucura que permita novas encenações. Pareciam encantadas com o branco das fantasias que por si só revelavam o total desapego a um mundo de encenação, de redescoberta de si mesmo. E sem a noção da música que tocava na banda de frevo, pensavam na letra de “Amor pra recomeçar” de Frejat que fala justamente sobre isso, quando ele diz: “eu poderia me perder neste momento para sempre…” Havia um adeus à dor que não era física. Havia um adeus ao drama do Pierrô que ama Colombina, que ama Arlequim, que, por sua vez, também ama Colombina. Havia sem grandes pretensões a busca pela essência humana. Entre passos complicados e frágeis, a sintonia coletiva se findava em um abraço para o recomeço. Agiam, como diria, Marcel Proust, “para tornar a realidade suportável, às vezes, todos nós cultivamos pequenas loucuras”. Era preciso se fantansiar de si mesmo. Naquele sábado, aquelas mulheres não se importavam com o fato de que a vida nem sempre acontecia como a que tinham sonhado. Estavam cientes de suas realizações, de seus desejos, de suas frustrações e de suas dores. E sem o beijo da partida na avenida, não contavam as mentiras pelas quais passaram ou se preocupavam em inventar novas verdades para quarta-feira ingrata. Essa não as faria mais chorarem. A cada melodia descobriam a inconsciente realidade de que problemas e desamores também podiam ser jogados a Iemajá. Podiam ser jogados ao mar. Afinal, estavam ali na avenida para viver o lado bom da vida, independente do Arlequim. Dos sonhos costurados na fantasia havia a semelhança com o Pierrô, sendo sempre o alvo de partidas, mas mesmo assim continuavam a confiar nas pessoas. E não se ausentavam da incredulidade que um dia as levou a não seguirem em frente, tentando se recomporem a cada dose perfeita, da distante quarta-feira que não chegaria tão depressa e sem contrariar, visto que o dia acomodaria apenas a ternura e a distância da tristeza. Não havia mais a inocência. Havia a confiança de que a futilidade e a banalidade não tomariam a alegria da avenida, pois de cara limpa aproveitavam de forma consciente. Não havia o despertar do ego. Era um distanciamento dos conflitos e a aproximação da certeza que ninguém poderia defini-las. Não era justo simplificá-las. Havia muita vida em seus passos aleatórios. Havia ternura e condescendência entre aquelas mulheres. Havia uma força da natureza, mesmo na feminilidade vulnerável. Havia filhos amados e guardados de suas dores. Havia satisfação em seus dias de luta. Havia respeito por manter a ilusão escondida para aceitar o fim e o controle do curso inevitável da vida. Havia sinceridade em suas histórias pessoais de pontes meio quebradas, mas o livro com finais felizes já não fazia mais sentido. Resistia-se naquele momento a pessoalidade. E a vida se assemelhava entre um frevo movimentado, intermediando entre o grave e o agudo da esperança; e a poeira deixada pelos versos tristes levava a superação de seus traumas, como o hino da manhã que vinha surgindo, com o abre-alas que todas queriam e iriam passar… Entre aquelas mulheres, as histórias se misturavam entre a busca comum da felicidade e as notas musicais das perdas, mas o som das clarinetas, dos trombones, dos trompetes, das tubas e saxofones se findavam na ideia de que tudo iria dar certo no dia de Iemanjá. Não havia uma visão romântica, mas a racionalidade de que toda nuvem tem um “fundo prateado”, como disse o poeta inglês John Milton, em 1634. Havia a certeza de que naquele dia, nunca mais aquelas mulheres voltariam a ser como antes. E como canta Stevie Wonder: “Maybe someday, you’ll see my face amoung the crowd/ Maybe someday, I’ll share your little distant cloud/ Talvez algum dia, você verá meu rosto em meio a multidão/ Talvez algum dia, eu divida sua pequena distante nuvem”.