Vivendo sem garantias


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“[…] Segurar passarinho na concha meio fechada da mão é terrível, é como se tivesse os instantes trêmulos na mão. O passarinho espavorido esbate desordenadamente milhares de asas e de repente se tem na mão semicerrada as asas finas debatendo-se e de repente se torna intolerável e abre-se depressa a mão para libertar a presa leve. Ou se entrega-o depressa ao dono para que ele lhe dê a maior liberdade relativa da gaiola […]” (Lispector, C. Água Viva, Editora Rocco, 1998. )


Tenho impressão que não estamos preparados para vivermos em um mundo sem garantias. Não falo de magia pink da Rosane Collor, de um mundo que não segue uma ordem moral transcendente no abuso sexual da Xuxa ou da volta ghost train de Demóstenes Torres as funções de procurador de Justiça no Ministério Público de Goiás. Falo da vida ínfima, em algum momento, de nos mantermos distantes da gaiola que sempre foi paralisante, mas confortável ao pensarmos no imprevisível das mãos.


Alguns nos toleram, outros nos entendem, outros nos desejam. Outros nos idolatram. Outros nem nos percebem, mas respeitam. Outros convivem.Outros apenas sufocam. Alguns nos libertam. Mas aí estar o sentido da ruptura da gaiola ou da sensação de pertencimento das mãos para os nossos sons ou silêncios.


Algumas relações podem regidas não pela felicidade, mas pela oportunidade de chegar lá. Esse entendimento pode ultrapassar a mera definição de se conviver o instante, sem a avassaladora promessa de entregar-se para sempre.


Por um lado, essas relações podem ser gaiolas não nocivas ou podem ser componentes do efeito borboleta ou teoria do caos, podendo influenciar o curso natural das coisas e, assim, ocasionar um tufão do outro lado do mundo, apenas com o bater das asas, alijando, refutando os que confortam. Ainda que sejam um pouco livres há medo, escolha ou talvez ou modelo represente o movimento ondulatório da física e um tempo que pode ser relativo.


Por outro lado, olhar e enxergar o vazio da gaiola é talvez a mais dura lição em aprender que o nosso controle é parcial. Não existe lógica na frustração garantida da prisão involuntária. Mas também não existe lógica em correntes esfaceladas. Existe sim a possibilidade de perceber o jogo de dados, seja para o seis ou para o nada. Às vezes jogamos com a sorte, perdemos tudo, ganhamos algo ou dividimos para a razão.


Já acorrentei e fui acorrentada. E aí vejo a equação exata. Talvez continue com as mesmas correntes para uns ou sendo alvo de ser fisgada por outros. Mas não tenho a certeza de vivenciar eternamente a mesma página, apenas o fato de nunca chegar à parte alguma por dias incontáveis.


Talvez menospreze a frase de Ruben Alves no livro “Variações sobre o Prazer”: “preciso viver a vida com sabedoria para que ela não seja estragada pela loucura que nos cerca.” Mas, entendo essa questão como uma prerrogativa de uma sintonia para a vida ser apenas interessante.


Em vários patamares, pode-se se sentir presa nos grilhões, seja nas amizades de décadas que apenas continuam lá; seja nos padrões sociais em que devemos figurar; seja nas atividades rotineiras de trabalho; seja nas fotografias em que necessitamos constar ou nas relações familiares que não dependem de felicidade para se estar lá. Já me senti assim.


Diria um esforço para manter as leis das clássicas frases feitas que podem demonstrar a previsibilidade de um sistema fechado em estado de graça, mas vítimas da indisposição social, sintoma de nossa insensibilidade ao outro. Morte de um mundo em que já fui um néscio, mesmo antes de nascer.


Diria que há prisão perpétua quando se percebe a mentira, a indiferença ou a falta de interesse em envolvimento. Mas é o chamado. E não se estar lá, é descansar na melancolia.


A razão não permite entender o porquê de tanto gostar de um e tanta resignação para outros quando a gaiola é a mesma, quando se permite ter apenas olhares e vontades diferentes. Seria não perceber as inúmeras possibilidades de uma oliveira, dispensando a azeitona quando não é ideal para um azeite extra-virgem, mas perfeito para uma classificação de azeite refinado.


Tudo depende do ato de generosidade, mas é preciso se entregar sem garantias. Tentar uma dança de salão sem a imposição de um ao outro, apenas deixar a melodia se definir, como Slow Dancing in a Burning Room de Jonh Mayer.


Quando penso nos pontos de interrogação, percebo-os como sinônimos de ausência dos gritos dos pássaros e das algazarras das crianças da rua esburacada. Comparo a um vácuo de um pote de sorvete em um mundo que parece gelado para sempre. É a mentira para se convencer. É fugir da verdade desagradável, é tentar algo parecido a Ensaio pela Cegueira de Saramago, como um sentimento do sonâmbulo que se acorda em um mundo branco, sem tela e sem luz. Algo semelhante aos pedaços de esperança que se dividem diante de um mar de cor cinza, sem o branco das ondas, sem o cais a deriva, sem o cair do entardecer, sem as adversidades ou ondas sem contornos.


Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão mencionou como é fácil uma população inteira perder a memória, trancar-se por décadas numa casa escura e se guiar para um mundo invisível, mesmo quando a vida continua passando, mesmo quando não se quer ou se tem vontade de ver além de um espesso bosque de flores. É o salvo-conduto ou o passaporte para quem vive ou se deixa à deriva para o vazio da presença coletiva, ou na projeção naqueles que irão arrastá-los para fora do vazio em que se encontram.


Se a levitação dos pássaros é a incongruência, somos alcançados pelo efeito paradoxal da creatina. Há dor, solidão pela sobrevida a dois, mas há perfeita analogia para quem realiza exercício físico de intensidade muito alta. Existe a suplementação que promete fornecer energia quando ultrapassamos o limiar anaeróbico. Mas não adianta tomar doses maciças esperando uma exacerbação no rendimento esportivo. Não falo de placebo, mas da creatina natural que já existe lá e é despercebida.


Sem uma bússola certa, pode-se narrar a história sem subjetividade, ainda que haja uma felicidade encomendada, sem ignorância ao desejar que as relações se eternizem, que a alegria se apresente em dia certo, que a confiança seja de escoteiro ou mesmo que perenizem as verdades absolutas. Que as amizades sejam feitas para durar, pois lá no fundo, é importante aprender dançar sozinho, sendo o seguro saúde ou de vida de si mesmo.


Tudo é uma possibilidade.E sem garantias definidas, é preciso trilhar os roteiros e, talvez, chegar a plenitude de amadurecer de maneira mais leve, sem tentar mudar a natureza humana, mas apenas compreendê-la. E se a vida fizer sentido que seja na sequência que envolva as mãos e nunca o final do livre-arbítrio.

 

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Luciana Santa Rita