Outras Palavras By Felipe Damorim / Share 0 Tweet José Saramago, Nobel de literatura… melhor escritor da língua portuguesa ou grandessíssima empulhação? Felipe de Amorim volta do Reveillon com sangue nos zóio! José Saramago não é um bom escritor. E digo isso com conhecimento de causa. Depois de Shakespeare, Saramago é provavelmente o autor que eu mais li. O intrigante é que nunca fui fã do velho portuga… mas perseverei em acompanhar sua obra, tentando descobrir onde, em meio a toda aquela bobagem, estava a fagulha de genialidade que somente os outros pareciam ver. Foi lá pela quinta chance que dei à Saramago que percebi que a tal fagulha não estava, nunca esteve lá… O homem era mesmo um embuste perpetrado pela Academia Sueca. Muitos dos meus amigos tinham sido enganados. Veja bem: não é que Saramago não saiba escrever. Em termos puramente estilísticos, ele é realmente genial. Sua prosa tem uma fruição única, sua linguagem é um atributo singular. Não é puro fluxo de consciência, nem é digressão… a criatura de Saramago é algo novo, que passeia pelos dois mundos sem descambar totalmente em nenhum dos formatos já conhecidos da literatura. Ler Saramago é sempre uma experiência interessante e, nos seus melhores momentos, também muito estimulante… acho que só a Virginia Woolf dos dias bons consegiu criar um estilo tão pessoal e tão agradável quanto Saramago. Faulkner talvez conseguisse fazê-lo, mas seu objetivo era mais incomodar o leitor que abraçá-lo, e não é possível comparar a alienação causada pelo angustiante monólogo de Quentin Compson em O Som e a Fúria com o enredar suave que o texto de Saramago exerce. Então, sim: Saramago sabe escrever, de um ponto de vista técnico. Mas técnica não é tudo… a prosa saborosa de Saramago, suas longas cantilenas que se confundem com o fôlego do leitor disfarçam deficiências muito graves de concepção. Ou, pra ser direto e reto, as histórias de Saramago costumam ser ruins. O processo criativo de Saramago gira em torno de uma idéia-gatilho, geralmente de natureza fantástica, que é então extrapolada em suas consequências para gerar uma trama. E se todo mundo ficasse cego? E se a Morte largasse o emprego? E se Portugal inteira se destacasse da Europa e seguisse rumo ao Novo Mundo? Não é um processo criativo inovador… na verdade, John Donne e a patuléia metafísica, lá pelo reinado da primeira das Elizabetes, já seguia esqueminha semelhante para compôr seus poemas. Hoje, no reinado da mais recente das Elizabetes (nunca tinha notado que você também é elizabetano, leitor? Você e Shakespeare têm algo em comum…) a extrapolação é um método também muito popular. Borges, que conhecia bem Donne (o cegueta foi professor de literatura inglesa lembram?) produzia da mesma forma, escolhendo um conceito inaudito e se extendendo então nos seus efeitos… Borges pensa “e se existisse alguém que nunca se esquece de nada?” e a história se desenrola analisando o impacto desse fenômeno no mundo. Mas aí acontece que Borges era um grande escritor, e Saramago não. Em “Funes, o Memorioso” Borges pega seu conceito inicial relativamente simples e o usa para investigar linguagem, identidade e, em última instância, a própria definição de natureza humana. Umas coisas assim, que envolvem Hegel, sabe? É complicado. Saramago porém, nunca consegue fazer o mesmo. Ainda que suas idéias sejam originais ou intrigantes, seus desenvolvimentos e desfechos sempre pecam pela mediocridade. Em Ensaio Sobre a Cegueira o conceito inicial de uma população inteira incapaz de ver o que está na sua frente, ou uns aos outros, cativa. Mas Saramago não consegue ir muito mais além do que preconizar que, imunes ao olhar alheio, a humanidade tende à violência, um conceito que é até meio simplista (não tem um filme horrível com o Kevin Bacon baseado na mesma idéia?) e que, esgotado, dá lugar a um final fácil que daria vergonha ao criador do deus ex machina. Pior acontece em História do Cerco de Lisboa onde, segundo as palavras sábias de meu chapa Luiz Farat, “…nada acontece. O cara muda um evento histórico para acabar contando a história do mesmo jeito que ela realmente ocorreu.” Saramago ainda inclui uma história de amor água-com-áçucar para dar alguma encorpada no livro, o que só torna mais evidente a total ausência do assunto. Eu poderia continuar. O fato é que Saramago não consegue, como Borges, ou Bioy Casares, manejar muito bem conceitos abstratos. Suas idéias são prenhes, mas não alçam vôo. Falta à Saramago uma certa experiência em primeira mão que possa atribuir vivacidade às suas histórias, como acontece com Lobo Antunes, ou, ao menos, uma capacidade de sintetizar e aplicar conceitos literários e intelectuais como Eco ou Bolaño. Saramago chafurda em um oceano de idéias feitas e mesmo sua compreensão de realidades literárias me parece discutível… qual o sentido de, em Memorial do Convento, uma personagem ser capaz de enxergar através de objetos? É pra ser realismo mágico? O real maravilhoso é uma característica da literatura latino-americana, resultado de seu débito com a oralidade e o misticismo da população autóctone. Não faz sentido na Portugal européia, ainda mais porque as idéias de Saramago tem pouco a ver com os verdadeiros mitos orais lusitanos (e mais com um pastiche do Super-Homem)… É pra ser uma metáfora? De quê? Se disserem que é da capacidade intuitiva feminina, meu respeito por Saramago diminui ainda mais, pois ele passa a ser culpado de lugar-comum em primeiro grau. Pode-se dizer que o navio movido à aspirações dos mortos, no mesmo romance, tem lá seu valor como alegoria do colonialismo renascentista… mas não é lá das mais sutis. (O pior é que o subtexto de O Memorial do Convento é até bom… a idéia de que a glória de Portugal se ergue na exploração do povo, e é na verdade a glória de uam dinastia apartada da realidade. Mas subtexto não é nada se a execução é tosca… se Saramago tivesse deixado de lado a besteirada fantástica que ele não sabe usar, poderia até ter saído com um bom livro.) Saramago é muito bom em usar palavras, péssimo em usar idéias. A riqueza de sua prosa esconde uma vasta aridez intelectual. E talvez aí esteja o segredo de seu sucesso… Saramago é o escritor ideal para uma classe média mal-instruída, que tem pretensões intelectualóides, mas sem muita areia no saco. Não é um problema só brasileiro, mas também europeu (norte-americanos não lêem livros de verdade). A literatura de Saramago é superficialmente estimulante, mas oferece pouca coisa em matéria de conceitos complexos ou reflexões profundas além das banalidades mais usuais que se pode encontrar em um livro-texto ou na cabeça de um primeiroanista de faculdade. Chamei sua obra de oceano de idéias feitas, mas retiro o que disse… é, com mais propriedade, água rasa, onde se pode nadar dando pé, sem risco de afundar em um pensamento mais amplo. E é por isso que Saramago não é um bom escritor. Escrever bem só não basta. É preciso ser grande, o que é impossível quando as idéias são pequenas. (Ainda assim, recomendo a leitura de pelo menos alguma coisa de Saramago para todo mundo… o estilo dele é mesmo muito legal. Considere um exercício estético, ainda que não tenha lá muito conteúdo. José Saramago é a mulher bonita e burra das letras.)