O Bom Soldado


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Ford Madox Ford e seu romance foram pontos altos da literatura do início dos século. Nessa semana, Felipe de Amorim se esforça para tirar do esquecimento uma das obras mais complexas já escrita sobre relacionamentos humanos e suas traições.

* Ford Madox Ford é o pseudônimo mais legal da literatura. Essa é a primeira coisa que devemos saber.

* Não é muito comum mencionarem Ford Madox Ford hoje em dia. E até bem possível que você nunca tenha ouvido falar dele. O Bom Soldado não é figurinha fácil das listas de melhores romances, não é estudado nas faculdades, não consta de bibliografias. Pelo menos no Brasil… listas elaboradas por críticos da língua inglesa costumam elencar esse romance com alguma regularidade. E com justiça: O Bom Soldado é uma verdadeira obra-prima.

* No começo do XX a literatura inglesa passou por uma boa fase. Foi como se ela tomasse uma injeção de criatividade dinâmica, que arrebentou as estruturas já então engessadas do realismo dickenseniano. A principal causa foi a influência estrangeira, particularmente do impressionismo psicológico dos franceses. Não é de se estranhar que Ford assumiu ter se inspirado para escrever O Bom Soldado lendo a obra de Guy de Maupassant. Os dois tinham muito em comum.

* O alcance da influência de Ford sobre os autores de sua época é muito subestimado. Mas ele foi provavelmente um dos autores ingleses mais importantes do início do Modernismo. Era amigo de Joseph Conrad, com quem dividiu a autoria de alguns romances, e de Henry James. Foi editor da TRANSATLANTIC REVIEW, que, entre outros, lançou D.H. Lawrence. Escreveu vários romances e é reputado como o criador da técnica do flashback.

* Essa história do flashback, cá entre nós, é bem discutível. Toda segunda parte de Os Irmãos Karamazóvi é um grande flashback, assim como Em Busca do Tempo Perdido. Mas, mesmo que Ford não tenha inovado na técnica, ele se destaca pela forma elegante e precisa em que soube combinar diversos recursos literários então inovadores para contar uma das mais velhas histórias do mundo… a de um homem traído.

* O Bom Soldado é narrado por John Dowell, gringo-americano abastado, que tem a infelicidade de contrair núpcias com Florence, garota simpática nas aparências mas que, no fundo, é o que vovó definia como “rueira”. Mas Dowell, que como ele mesmo admite, não era lá a faca mais afiada da cozinha, vai levando sua existência matrimonial na mais doce ignorância, até o casal travar contato com os ingleses Edward Ashburham (o bom soldado do título) e sua esposa Leonora. Cidadãos de bem e respeitabilíssimos, os aristocráticos ingleses se tornam amigos íntimos de Dowell e Florence… e assim se inicia um caso de traição e mentiras que se extende por nove anos (e só acaba pela intromissão de um quinto elemento, que não vou revelar… vai ler o livro, cacete!)

* Relatando os fatos do pentágono amoroso de forma não-linear, conforme as lembranças vêem, e se perdendo em diversas digressões, O Bom Soldado é como um quebra-cabeças, que o leitor é convidado a ir montando aos poucos. Mas algumas peças nunca aparecem, ou se encaixam apenas para revelar uma imagem errada… tudo graças à narração feita por Dowell, que não é lá fonte das mais confiáveis. Esqueça o Dom Casmurro de Machado de Assis. Ainda que Bentinho tivesse lá seu ponto de vista pré-determinado, nada se compara ao nível de incoerência e subjetividade de Dowell. É óbvio, em mais de uma passagem, que o narrador mente e distorce fatos conforme vai contando a história, cuja verdadeira face só pode ser entrevista aqui e ali. Um bom exemplo é a declaração de Dowell de que o único sentimento que lhe resta quanto à sua esposa é a indiferença mais profunda… o que é desmentido em outra passagem, em que anuncia seu profundo ódio por ela.

* Essa é a grande sacada de O Bom Soldado. Nada, nem ninguém, é o que parece a princípio. Edward, o nobre militar de personalidade afável e sensível que conquista todo mundo, é também o marido promíscuo, irresponsável e priápico até o limite da legalidade (e, possivelmente, além). Leonora, a mulher traída, se revela uma manipuladora fria, que usa as traições do marido para controlá-lo, e garantir sua prosperidade. Tem também um frasco de remédio que não contém remédio e quanto a Dowell… é difícil crer em sua sinceridade quanto a própria participação nos fatos. A obtusidade quanto ao verdadeiro caráter de Florence, o afeto sentido por Edward mesmo após a revelação sobre o caso ou a figura trágica de pobre inocente vítima das circunstâncias que ele constrói para si no decorrer do livro, são todos elementos dignos de dúvida.

* O Bom Soldado é um romance de entrelinhas, em que muito da história é contada através do que não é dito. É uma trama latente, fantasma, que se manifesta nos arroubos de sinceridade e nos deslizes de Dowell. É difícil não vibrar quando o amável corno em questão, que até então demonstrara uma mansidão e resignação bíblica, irrompe e se refere à esposa como uma puta, exatamente nesses termos. Por outro lado, não dá para não desconfiar de seu amor por Edward, que Dowell observa com inveja e admiração… ainda mais ao se perceber que, no fim do romance, Dowell termina por tirar muito mais de Edward do que o bom soldado tirara dele.

* Em uma sociedade regida pela hipocrisia da lei das aparências e da aceitabilidade, Ford nos alerta para as discrepâncias ocultas. Não de forma moralista… a graça da coisa é que não existem heróis nem vilões em O Bom Soldado. Como o próprio Dowell afirma, são apenas pessoas, boas pessoas até, que, incapazes de controlar o rumo de seus desejos, se chocam umas contra as outras até atingirem a destruição mútua. Nenhum outro autor além de Ford retratou com tanto talento a volatilidade dos amores humanos, ou o caráter ambíguo de suas emoções. O narrador inconfiável, para Ford, foi muito mais que um recurso literário… é toda uma concepção de mundo, a representação de uma realidade em que todos enganam e são enganados ao mesmo tempo, nem sempre conscientemente ou por vontade própria. O leitor não pode confiar em Dowell, assim como esse não podia confiar em sua esposa e amigos… e, ironia das ironias, o leitor não pode confiar em si mesmo, pois qualquer conclusão sobre as personagens está fadada a ser parcial e desencontrada. Cabe a O Bom Soldado nos recordar que a alma humana é inapreensível e nunca se pode realmente descobrir a verdade sobre alguém… ainda mais quando mal sabemos a verdade sobre nós mesmos.

* Ford Madox Ford levou o romance psicológico a novos patamares de técnica e estilo, sem sacrificar profundidade. O Bom Soldado é um dos melhores romances do século XX e merece ser lido. Essa é a última coisa que você precisa saber.

About the author

Felipe Damorim

Felipe Damorim se formou em uma faculdade, e desistiu de outras duas. Editou livros, publicou contos, manteve blogs e dirigiu filmes. As pessoas dizem que gostaram de tudo, pelo menos na cara dele.