Muitas Críticas


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Existem diversos tipos de crítica literária. O livro, como objeto de análise, pode ser estudado por diversos ângulos diferentes. A seguir, um monte de besteira descompromissada sobre o assunto.

Um tipo muito popular, ou melhor dizendo, popularesco, é a crítica biográfica. Essa modalidade esportiva analisa uma obra literária a partir das experiências de vida de seu autor, traçando um paralelo entre a ficção e fatos ocorridos na vida real. Não é lá meu tipo preferido de crítica…

Tá certo, a crítica biográfica tem lá seu uso… como eu mesmo já escrevi, certos autores, como Céline, tem sua vida tão fortemente entrelaçada com sua obra que não vale a pena estudar uma sem a outra. Mas, ainda assim, é possível entender “Viagem ao Fim da Noite” sem saber nada sobre seu autor. Ao mesmo tempo, certas informações biográficas PARECEM ser reveladoras, mas não realmente contribuem em algo para o desenvolvimento da análise… Por exemplo, não sei se vocês sabiam, mas o Marcel Proust tinha um namorado chamado Albert. Daí para Albertine, a personagem de “Em Busca do Tempo Perdido”, é um tirico de fuzir. Mas… e daí? Saber que a paixão de Albertine era baseada em uma pesoa real (ou, mais provavelmente, em várias experiências reais) ajuda em alguma coisa na compreensão da saga proustiana?

O problema é que a crítica biográfica ignora a intencionalidade da arte. Escritores sem dúvida nenhuma se baseiam em vivências pessoais para produzirem suas histórias. Mas eles também mudam essas vivências, alteram fatos e reajustam climas para produzirem a verossimilhança exigida pela ficção. Em arte, tudo é de propósito, cada palavra foi cuidadosamente escolhida. Albertine e seus feitos são um resultado de um plano criado por Proust, e não de um impulso que não podia ser contido que exigia que o homem escrevesse sobre o amante. As respostas para o comportamente da personagem estão, igualmente, contidas na cuidadosa coerência interna do romance, e não em algum fato externo à ele. Nesse sentido,a crítica biográfica é meio inútil, pois como a maioria dos artistas insiste em dizer, para o vento na maioria das vezes, todas as respostas sobre um livro estão dentro do próprio livro. Ficar escarafunchando o passado de um escritor não ajuda a desvendar sua obra… é só fofoca, material para revistas de celebridades e para o infame semanário cujo nome não será mencionado.

Também não sou grande fã dos chamados estudos de gênero, e seus correlatos. Modalidade esportiva muito popular naquela terra devastada das humanidades que é a academia norte-americana, os estudos de gênero analisam a obra de um autor à partir de seu contexto social específico… o que, na prática, quer dizer usar Machado de Assis para estudar a questão racial, ou Safo para dissertar sobre lesbianismo. O problema, pra mim, é que os estudos de gênero tendem a ignorar coisas cruciais: primeiro, que contextos socias mudam conforme às épocas, e relações raciais e orientações sexuais são encaradas de forma diferente em um período histórico ou outro; e, segundo e mais importante, literatura, principalmente a de grandes autores, costuma encerrar muito mais que apenas questões sócio-políticas. Por exemplo, estudar Virginia Woolf apenas pela ótica do feminismo é um exercício interessante, mas limitado. Sua obra também fala sobre a natureza do conhecimento, a finitude da existência, a alienação causada por convenções sociais e o amor… não importando aí qual é o seu sexo.

A crítica histórica é mais interessante. A idéia aqui é analisar a relação entre o período histórico em que uma obra foi produzida e a própria obra, ou, no caminho inverso, usar uma obra literária para elucidar o pensamento vigente em determinada época. É meio o que eu fiz quando escrevi a resenha sobre Sade. O senão da crítica histórica é que, apesar de útil e interessante, ela encara o livro como ferramenta, e não como o objeto de estudo em si. Um grande trabalho de crítica histórica é, enfim, um grande trabalho de história, e não de literatura.

Existe também uma crítica técnica, meio na linha positivista, que é coisa do séxulo XIX… é daí que surgem todos aqueles termos literários que são legais de se repetir mas não explicam muita coisa… stream of conciousness, roman à clef, denouement, polifonia. A terminologia técnica é útil, admito… e as palavras são divertidas de pronunciar, além de fazerem você parecer muito inteligente… mas não explicam realmente muita coisa. Literatura é arte, acima de tudo, e a essência da arte é a representação do intangível. Dizer que “O Retrato do Artista Quando Jovem” é um künstlerroman contado através de tranches de vie é a mesma coisa que dizer que água são duas moléculas de hidrogênio com uma de oxigênio. Está explicada a estrutura da coisa, mas você não tem a mínima noção de qual é seu frescor, aparência e gosto. Crítica literária verdadeira não pode jamais prescindir de um certo grau de intangibilidade, de uma certa tentativa ainda que vã em apreender o espírito da obra, além de sua aparência. Resumir tudo a nomes bonitos e descrições estilísticas é errar a mão completamente. Ou você consegue me descrever a sensação de ver um quadro de Botticelli apenas enumerando as cores, tipos de tinta e pinceladas usadas pelo artista?

(Ainda assim, prometo que mais pra frente apresento à vocês um dicionariozinho de terminologia literária, para vocês impressionarem seus amigos e vizinhos!)

Temos também a crítica astrológica (JURO que não inventei isso) que analisa a influência do mapa astral de autores em suas obras, ou o papel que os astros exerceram em sua criação… aliás, suspeito que Emma Bovary era Touro, com Vênus em Sagitário. E existe uma crítica psicológica, da qual falo semana que vem. O ideal é não realmente optar por uma ou outra, mas tentar ver uma obra através de todos os ângulos possíveis, até achar um que seja o mais interessante. Ou misturar tudo: em “Formação da Literatura Brasileira”, Antônio Cândido combina crítica histórica, análise estilística e o que mais surgir pela frente para traçar o panorama do que foi o surgimento da literatura autóctone brasileira. É provavelmente o melhor livro de crítica sobre literatura brasileira jamais produzido… e claro, sob hipótese nenhuma algo como “Formação…” seria escrito nos dias de hoje, submetida às rígidas normatizações dos centros de pesquisa e, principalmente, à falta de ousadia e criatividade das universidades, regidas pela lei do mais medíocre.

Mas temos tempo para travar essa guerra.

About the author

Felipe Damorim

Felipe Damorim se formou em uma faculdade, e desistiu de outras duas. Editou livros, publicou contos, manteve blogs e dirigiu filmes. As pessoas dizem que gostaram de tudo, pelo menos na cara dele.