Outras Palavras By Felipe Damorim / Share 0 Tweet Na última parte desse meu panorama da literatura japonesa, o espaço é de dois autores que representam não só o estado atual das artes no Japão, mas o próprio embate que a literatura mundial enfrenta no momento… De um lado do ringue, com um Nobel na cintura, o expert do existencialismo, o pioneiro da profundidade, Kensabuuuuuuuro Oeeeee! E, do outro lado, o desafiante, o príncipe do pop, o queridinho das massas, Harukiiiiiii Murakaaaamiiiii!!! Round One. Fight! Ok, recuperando a compostura. Quando Kenzaburo Oe começou sua carreira, a literatura japonesa já era uma criatura muito diferente do que fora no início do século. Tanto Jun´Ichiro Tanizaki quanto Yukio Mishima já tinham aberto os espaços e mentes do mundo para as letras vindas do Japão. Ao mesmo tempo a própria nação japonesa já estava em pleno ritmo de ocidentalização. Vale lembrar: com o fim da Segunda Guerra Mundial, na qual o Japão teve a infelicidade de participar do lado perdedor, o governo japonês foi essencialmente desmantelado e substituído por algo mais amigável aos norte-americanos, que ainda garantiram presença militar e econômica maciça no arquipélago asiático. Essa “boa amizade” gringa, que nós conhecemos tão bem, foi interpretada como uma tutela por alguns setores da sociedade japonesa, e causou profundos efeitos na cultura e modo de vida daquele povo. Não se trata aqui de uma mera adoção ou cópia de costumes ocidentais desvinculados da realidade local, como é comum no Brasil ou em outras ex-colônias européias. O Japão basicamente se reconstruiu como uma nova nação ocidental, a partir de raízes orientais que foram readaptadas ou transfiguradas. É engraçado notar como certas características marcantes do Japão de hoje tem suas origens, na verdade, no Ocidente… é o caso dos personagens de anime e manga com olhos escancarados e design estilizado, uma das referências icônicas que mais facilmente remetem à cultura nipônica. Bom, a razão pela qual esses personagens são desenhados assim é porque a principal influência dos cartunistas japoneses foi Walt Disney, que sempre serviu de ponta-de-lança cultural da máquina militar norte-americana (Lembram de The Three Amigos, e o Pato Donald tentando descobrir o que é que a baiana tem? Lembram?! Desenho legal…) Se você reparar em arte japonesa anterior à guerra, é evidente a diferença de estilo entre ontem e hoje. Essa ocidentalização não foi algo vista sempre como benéfica, nem foi algo aceito de forma passiva e sem polêmica. Vejamos o caso literário, que é onde tenho menos chances de falar besteira. Kenzaburo Oe se formou em literatura francesa na faculdade; estudou e manteve contato com Sartre e ergueu o escopo de sua obra nos fundamentos mais nobres da tradição européia. Mas, por outro lado, Oe absorveu também as lições de Tanizaki, usando o sexo como metáfora prioritária para retratar os dilemas do povo japonês… no caso, a estranha relação de submissão e admiração, ódio e amor que os japoneses sentiam pelos seus dominadores estrangeiros. A obra de Oe se caracteriza por um viés bastante pessoal e uma forte nostalgia. Reminiscências sobre a infância e a juventude são um ponto importante do seu corpo artístico, e o teor auto-biográfico é forte… E, ironicamente, isso tudo também pode ser dito da obra de seu contemporâneo Haruki Murakami. Ironicamente porque Oe e Murakami não são exatamente aquilo que pode se chamar de “chapas”. Deixa eu explicar assim: se Oe entrasse no bar que Murakami já teve e pedisse uma cerveja (Sapporo, provavelmente) ele não diria “amigo, me vê uma trincando”… ele diria: “escritor-rival de qualidade inferior, profundida nula e penchant irritante por lugares-comuns autoindulgentes dirigidos aos leitores de senso crítico mais embotado, me vê uma trincando por favor.” A acusação é que Murakami seria o que se chama de batakusai, ou, “fede-à-manteiga”… um termo japonês para designar os nativos que renegam as origens para afetar um estilo de comportamento e um universo cultural totalmente ocidental (a manteiga, ausente da culinária tradicional japonesa, é ingrediente preferencial nas infindáveis frituras que todo gringo-americano gosta). O fato é que a carapuça não está fora de medida… Murakami anunciou diversas vezes que seu objetivo é ser um escritor universal, mais que um escritor japonês, e sua obra, coalhada de referências à cultura pop, dedica linhas para mencionar jazz e F. Scott Fitzgerald, baseball e os Beatles… que inclusive batizam seu romance mais famoso, “Norwegian Wood”. Ainda assim, a obra de Murakami apresenta a mesma triste nostalgia e solidão que a de Oe, o sentimento que pode ser tanto resultado da dificuldade de se criar um consciência própria e individual em uma sociedade tradicionalmente voltada para a coletividade, quanto o pesar de toda uma nação buscando redefinir seu lugar no mundo após ver sua velha auto-imagem imperial destruída da forma mais cataclísmica possível. Mesmo a crítica às menções constantes a elementos da cultura popular nos livros de Murakami, um aspecto que não ajuda a dissipar a pecha de superficial do autor, pode ser explicada como uma manifestação da erosão da cultura japonesa causada pelo consumismo desenfreado, que, após o colapso econômico do Pós-Guerra, revitalizou a indústria mas criou um país em que o débito privado é epidêmico. Se Oe e Murakami são tão semelhantes tematicamente, onde ocorre o desencontro que justifica tamanha polarização por parte da crítica e do público? O fato é que, embora os dois autores dividam entre si percepções semelhantes sobre a sociedade que os cerca, são dois tipos muito diferentes de escritores, reproduzindo em nível local uma cisão que atinge a literatura contemporânea de todo o mundo. Oe é um autor à moda antiga, de prosa complexa e rebuscada, enquanto Murakami prefere um estilo mais leve e displicente; Oe é escritor de parágrafos longos, seguindo a linha de Jean-Paul Sartre e Albert Camus, enquanto Murakami escolhe frases curtas e está mais próximo de Nick Hornby e Dave Eggers; Oe descreve os intricados meandros do que seus personagens sentem; Murakami retrata o que seus personagens fazem. Como o próprio Oe já constatou publicamente, sua literatura é um mico-leão dourado; algo próximo da extinção. Um tipo de forma de arte cuja relevância a cada dia tem alcance menor, causado pela diminuição geométrica do público habilitado a compreender sua linguagem específica. O estilo solto de Murakami, de fácil apreensão e voltado para pessoas mais familiarizadas com Guitar Wolf e Godzilla do que com Proust e Flaubert, possui futuro e, mais importante ainda, presentes mais saudáveis. No dia em que o romance de estilo europeu for um hobby para (ainda mais) poucos, um estilo artístico de alcance limitado a guetos de intelectuais e aficcionados, com status semelhante ao que a poesia tem hoje em dia, veremos que a rixa de Oe e Murakami representa algo muito mais vasto que a disputa pelo título de maior escritor japonês vivo. É a briga entre a velha arte e a nova. Oe sai com respeitabilidade e reconhecimento crítico, Murakami sucesso e dinheiro. Mas, se os dois ganharam, quem foi que perdeu?