palavAras By Rogério Felipe / Share 0 Tweet Gadgets. É melhor dizê-lo no plural. Até porque, tal como um espirro, os gadgets nunca marcham sozinhos. Os gadgets são legião. Tratar-se-ia de uma palavAra? A pronúncia no inglês desta palavra mestiça pode ser experimentada aqui: http://pt.forvo.com/word/gadget/, e é possível perder o ar ao tentar dizê-la, numa espécie de gagueira: “…gad-get, g-ad-g-et…”. Repare que este website nos disponibiliza nada menos do que um gadget que permite que internautas registrem modos de se falar gadget – “Há gadgets que fazem falar…”. – Isso funciona? Sabendo ou não a sua pronúncia exata, o fato é que estes apetrechos já fazem parte do nosso cotidiano há bastante tempo, sendo possível afirmar a existência dos gadgets mesmo antes deste termo ter sido cunhado. A presença dos gadgets entre nós encontra-se hoje em dia tão evidente que chegamos ao ponto em que está cada vez mais complicado convencer uma criança a usar um relógio de pulso, por se tratar de uma maquineta de um só gadget, como ilustrei anteriormente aqui: Nothing but gadgets. E olha que há relógios desprovidos de qualquer função, mas que ainda assim funcionam como um gadget – apresento como exemplo o relógio de bolso do coelho branco de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll. O coelho branco salta da toca e saca do bolso “inexistente” de seu colete um relógio sem ponteiros, para o qual olha assustado e diz: “Oh, puxa! Oh puxa! Estou atrasado!”. Até a natureza nos tem pregado peças, o ornitorrinco é o devir-animal dos gadgets. Dos outros animais o ornitorrinco acoplou as peças mais inúteis, dando-lhes todo um modo de funcionar avariado. Um animal que é pura bricolagem do desassossego, imagem da aventura do pensar sem imagem, o avesso da lógica, performance da evolução-involução, intervenção no mamífero em encontro com a ave pato ou esquizomamífero, devir raspas d’um n’outro, cartografia da incerteza animal, "a prova de que Deus tem senso de humor" conforme Woody Allen, ou simplesmente um bloco de gadgets no mais profundo da pele de um animal. Gadgets, expressão que bem poderia surgir em um texto beckettiano, por apresentar uma multiplicidade de sentidos e ao mesmo tempo não ter sentido nenhum, numa espécie de “Esperando Gadget” ou de “O Inominável”. Quase um signo puro a se acoplar a outros signos, toda uma maquinaria de expressão que pode se deslocar tal como um agenciamento coletivo de enunciação. Os gadgets circulam à boca pequena pelas esquinas, ganhando sentido de geringonça, de dispositivo, de aplicativo informático, e também na forma de conceito por intercessores como Deleuze, Guattari, Lacan, Baudrillard, entre outros. Reza a lenda, conforme o artigo “La psychanalyse ou les gadgets”, de Sophie Bialek, que a origem do termo gadget está ligada à construção da Estátua da Liberdade, tendo sido forjada pelo escultor Bartholdi, cuja carpintaria metálica foi instalada no atelier do Monsieur Gaget (isso mesmo, Gaget e não gadget). Pois o Monsieur Gaget, que também era escultor, resolveu criar pequenas maquetes da estátua para fins comerciais, negociando-as a preços módicos. Este pequenino artefato, bibelô sem utilidade, curiosamente despertava enorme interesse nas pessoas que o viam e quase que instantaneamente desejavam possuir uma pequenina réplica da estátua, que vinha sempre com o nome do Sr. Gaget cravado nela. Daí para a produção em larga escala deste pequenino objeto de desejo a ser comercializado tanto em Nova Iorque quanto em Paris e para o imbróglio lingüístico franco-anglo-saxão (também em larga escala), foi um pulo. Acredita-se que os franceses têm enorme preguiça de falar e entender a língua inglesa e vice-versa. Logo, dos dois lados do Atlântico, começou-se a chamar de gadget a estes produtos que vinham com a palavra “gaget” gravada. Você visita a Torre Eiffel, a Estátua da Liberdade, o Cristo Redentor ou qualquer outro monumento turístico e sente dificuldade em resistir à força de atração que instaura a necessidade de comprar uma réplica destes monumentos, mesmo sabendo que ao chegar em casa aquele objeto não terá nenhuma utilidade. Em episódio recente, o premier italiano Silvio Berlusconi foi atingido no rosto por uma réplica em miniatura da catedral de Milão, gadget que funcionou para além de sua função de souvenir enquanto objeto, mas que ficará na lembrança de um povo e nas marcas de um rosto. No livro-bomba “O Anti-Édipo”, Deleuze e Guattari trabalham com a noção de gadgets como se estes fossem pequenos objetos ou aparelhos engenhosos que constituem uma novidade. Escrevem ainda que os gadgets nada têm a ver com as máquinas desejantes, conforme a esquizoanálise, nem com fantasmas, tal como este último conceito é abordado na psicanálise. Ou melhor, têm a ver, no sentido inverso, pois os gadgets, as descobertas e os fantasmas são resíduos de máquinas desejantes submetidas a leis específicas do mercado exterior do capitalismo ou do mercado interior da psicanálise. É aqui disparada uma crítica contra a concepção psicanalítica lacaniana dos gadgets na qual estes operam como sintomas de uma espécie de delírio funcional contemporâneo que toma o objeto como fonte de satisfação e objetifica os sujeitos, tornando-os sujeitos-objetos. Os gadgets no geral são criados com funções pré-definidas, mas o que está em jogo, além e aquém de suas funções é como eles funcionam, ou deixam de funcionar, mais até do que suas funcionalidades já dadas. Alguns gadgets funcionam avariados, outros não funcionam mesmo estando em plenas condições. Parece-me que, há muito, o como funciona superou o absolutismo da idéia de função. Veja o exemplo recente dos aparelhos de telefonia celular, que já não são telefone, mas sim, depositórios de gadgets. Suas funcionalidades costumam ir além de como os colocamos para funcionar… no mesmo instante em que sua função apriorística já caducou. Os gadgets caminham junto com a pressa alternando velocidades e lentidões. Afinal, o que pode um ou mais gadgets? Que tipo de acomplamentos podemos criar com os gadgets? Com que fins, através de que meios? Os gadgets podem ser inúteis, e de repente você cria uma utilidade para eles. As crianças o fazem o tempo todo. O que está em jogo, volto a dizer, é a pergunta como funciona, e de forma nenhuma mais um catálogo de funções. Alguns personagens se tornaram célebres através de seus gadgets. Talvez o mais “bem sucedido” de todos, o nosso Monsieur Gadget, ou a vingança anglo-saxã é justamente o garoto propaganda dos gadgets porvir, o agente secreto 007, James Bond, com sua infinidade de apetrechos, ferramentas, carros de luxo que ao aparecerem na tela de cinema aguçam imediatamente o desejo do espectador que reside em nós. Gadgets que funcionam impecavelmente, desde um terno que não amarrota, passando por relógios comunicadores, caneta que aciona um lança-mísseis. Gadgets de um 007, e o amanhã nunca morre. Até mesmo as musas deste espião funcionam como uma espécie de gadget, objetos de desejo que nos objetificam através do belo e do sensual. Talvez menos glamoroso e mais divertido é a paródia a James Bond que encontramos no Agente 86 (Get Smart) e seus gadgets que quase sempre funcionam avariados. Imaginem um agente secreto que quando está em missão também secreta, utiliza um crachá pregado no terno à altura do peito dizendo “Agente Secreto”. Mais ainda, seu telefone escondido na sola do sapato, detalhe, só podia ser um gadget, digo, aparelho de telefone de discar, pois se fosse de teclas ou touchscreen, a cada passo uma nova ligação. E daí passamos ao cinto de utilidades do Batman e seu Batmovel o carro movido a gadgets. Não nos esqueçamos de citar o próprio personagem de desenho animado, o Inspector Gadget, outro agente secreto e seus apetrechos. A maleta do Gato Félix e o sem número de objetos inúteis que são sacados de dentro dela. Os Super Gêmeos, que, pasmem, eram capazes de um devir-gadget: “Super Gêmeos ativar… forma de um balde de gelo… forma de uma raquete de tênis.” Não podemos nos esquecer de MacGyver em sua profissão perigo, pois ele criava seus próprios gadgets, eis um modo interessante de sair do lugar de quem apenas recebe, compra e consome os gadgets dos outros. As Mitologias de agora, se quisermos cartografá-las tal como Roland Barthes o fez na década de 1950, também estão cheias de personagens conceituais e seus dispositivos. É o caso do fenômeno pop Lady Gaga, ou como eu a chamo, “Lady Gadget" aliás, esta artista que se traveste de gadgets, quem ainda não a assistiu no vídeo de “Bad Romance” e que com(o) os demais gadgets e as demais máquinas “fantásticas” e seus gadgets “fabulosos”, cunha através da expressão de seu corpo e filiações semióticas, os mais variados signos de leitura pop. Signos de sedução, de sensualidade, de androginia, de pastiche, de ironia, ícone pop como fetiche de mercadoria imagético-musical, “Lady Gadget, Lady Gaga”, por favor (não) nos responda o que pode um corpo. Os gadgets não são bons ou ruins, eles apenas funcionam ou deixam de funcionar. Funcionam avariados ou plenamente, e isso nos alegra e ao mesmo tempo nos enjoa. Os gadgets não foram feitos para durar para sempre, mesmo porque ainda não inventaram um gadget que nos permita chegar à exata medida da duração de um para sempre. Aos que se sentem aprisionados por algemas em forma de gadgets, lembrem-se que a chave pode ter também a forma de um gadget. Subverta!