Ronda Noturna By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Algumas impressões de Rodin sobre a relação entre a arte e a fotografia. O escultor Auguste Rodin deixou registradas algumas de suas reflexões sobre relação entre a fotografia e a arte numa série de entrevistas com Paul Gsell: Rodin: Você já olhou mais atentamente para alguma daquelas fotos instantâneas de homens em movimento? O quê percebeu? Gsell: Que eles não parecem estar avançando. Geralmente, eles parecem estar paralisados sobre uma perna, ou já saltando. Rodin: Exatamente! Tome meu “São João”, por exemplo. Eu o mostro com os dois pés plantados no chão, quando uma fotografia tirada de um modelo executando o mesmo movimento provavelmente mostraria o pé anterior já levantado e movendo-se à frente. Ou talvez o reverso – o pé dianteiro não estaria no chão se a perna traseira na fotografia estivesse na mesma posição que a minha estátua. É precisamente por isso que o modelo da fotografia tem a aparência bizarra de um homem que foi subitamente vitimado por uma paralisia. As pessoas nas fotos parecem congeladas no espaço, apesar de terem sido captadas em pleno movimento: isto ocorre porque cada parte do corpo é reproduzida na mesma fração de segundo, portanto não há um desdobramento gradual do gesto, como acontece na arte. Gsell: Então, quando a arte interpreta o movimento e encontra-se em completo desacordo com a fotografia, que é uma testemunha mecânica incontestável, a arte obviamente distorce a verdade. Rodin: Não. É a arte que conta a verdade e é a fotografia que mente. Pois na realidade o tempo não pára, e se o artista é bem sucedido em dar a impressão de que um gesto está sendo executado durante vários segundos, seu trabalho é certamente muito menos convencional do que a imagem científica na qual o tempo foi abruptamente suspenso. (Paul Gsell, em “August Rodin. A Arte: Conversas Reunidas”) Rodin discorre ainda sobre Géricault e sua tela “Corrida em Epsom”, com os cavalos todos com as patas estiradas. O escultor argumenta que a imagem é a condensação de vários movimentos sucessivos, de maneira que, se a representação do todo é falsa em representar estes movimentos todos como simultâneos, ela é verdadeira quando as partes são observadas em seqüência, e esta é a única verdade que conta, já que este é o modo como vemos e como somos tocados pelas impressões. Creio que a fotografia permitiu que as artes, e em especial, a pintura, finalmente rompessem com uma tradição de unicidade que remontava ao Renascimento. Porque através da fotografia é que se pode perceber mais claramente o modo como a nossa mente organiza as percepções, o modo como os olhos vasculham o campo de visão incessantemente, fixando-se aqui um pouco mais e ali um pouco menos, construindo o espaço através de uma infinita sobreposição de imagens distintas e dinâmicas. Por isso a defesa de Rodin: é a arte que conta a verdade e não a fotografia. Quando a câmera captura o movimento com precisão, vemos algo que não deveria ser visto nunca, não por nossos olhos: vemos o tempo que parou. E isso a pintura não faz. Na pintura, não há suspensão do tempo como na fotografia. A própria construção da imagem consome tempo, até a pintura mais livre e gestual. E ao espectador cabe boa parte desse mesmo processo construtivo da imagem. No Renascimento estabelecia-se que ele aceitasse as regras formais propostas, particularmente às relativas à perspectiva geométrica. Hoje, exige-se que o espectador interaja e complete o trabalho proposto pelo artista. Mas não há nunca a possibilidade de fixar o tempo como a fotografia faz. Acho que vem disso a inquietação que sinto ao ver uma foto do século XIX, meio embaçada porque o modelo se mexeu durante os longos minutos de exposição: não deveríamos ver a imagem de um instante que foi capturado, congelado e morto. Talvez por isso algumas fotos sejam tão inquietantes: por congelarem um momento da vida, trazem a morte dentro de si, inevitavelmente.