A revelação que não se dá

As grandes obras têm sempre um mistério, que não conseguimos identificar ou mesmo nomear. O retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez, é um bom exemplo da natureza intangível de uma obra-prima.

Que a arte é uma necessidade visceral é coisa fora de questão. Como afirma Merleau-Ponty, “não se percebe como um Espírito poderia pintar”. Ou Maurice de Vlaminck: “Empenho-me em pintar com o coração e os rins, sem me preocupar com o estilo”.
Jean Renoir conta que, no fim da vida, seu pai dava uma entrevista a um jornalista e este se horrorizou com a deformação de suas mãos, causada pelo reumatismo, e perguntou como ele pintava com as mãos naquele estado. Renoir, algo aporrinhado com a estupidez da pergunta, respondeu de modo mais sincero do que o jornalista certamente gostaria: “Como? Ora, com o meu car****”. Segundo Jean, nenhum dos amigos que estavam presentes riu de sua tirada “porque a resposta era a evidente expressão da verdade, um dos raros testemunhos, tão raramente formulado na história do mundo, do milagre da transformação da matéria em espírito”.
Para o pintor, a necessidade de pintar é fisiológica: não há escolha. Nesse aspecto, o pintor contemporâneo está numa situação idêntica à do artista de Altamira ou Lascaux. Ele pinta com seu corpo por uma necessidade física e por uma motivação que é quase mística.
Pinta como que nas trevas, sendo sua pintura a tentativa de produzir algum foco de luz que ilumine e revele a verdadeira face das coisas.
Mas essa revelação nunca se dá. Nunca.
A Grande Obra é isso: sentimo-nos no limiar de retirarmos o véu que encobre as coisas, mas ele é pesado demais e temos apenas um vislumbre de uma Verdade que parecia estar ao alcance dos dedos e que nos escapa.
Enquanto escrevo isso, penso no retrato do papa Inocêncio X, de Velásquez. Velazquez_Inocencio_X(clique aqui para visualizar uma imagem em alta resolução)
Um contemporâneo descreveu o papa como “alto em estatura, magro, colérico, com um rosto avermelhado, careca na fronte, com espessas sobrancelhas arqueadas sobre o nariz (…), que revelavam sua severidade e dureza.” Outro o considerava “o mais repugnante de todos os sucessores do Pescador”, bem como “medíocre, realmente vulgar”, com a expressão “similar a de um rábula astucioso.” Homem vigoroso e sanguíneo, dado a explosões de cólera, foi papa de 1644 até 1655.
Consta que sua reação ao ver a pintura de Velásquez foi de desagrado. “Muito verdadeiro”, teria afirmado.
Este retrato é um dos maiores testemunhos humanos que já vi. É da mesma estatura dos últimos auto-retratos de Rembrandt, do “Dom Quixote”, de “Rei Lear”, dos últimos quartetos de cordas de Beethoven.
Não conheci, é óbvio, o papa Inocêncio X. Mas ali, naquele retrato está o ser humano completo, que pareço conhecer pessoalmente. Posso intuir tudo aquilo o que foi descrito por seus contemporâneos nesta imagem. Intuo seu caráter irascível, sua desconfiança, a ausência de compaixão ou de qualquer outro atributo cristão… Está tudo ali, naquela superfície plana coberta de tinta.
E neste momento, estou no limiar de alguma revelação. Sinto que a imersão da minha consciência nesta obra irá manifestar-me algo de mais profundo, mais verdadeiro, algo que, em condições normais, está oculto da minha percepção.
Sinto-me na iminência de uma epifania e, no entanto, fracasso. Não atinjo essa profundidade prometida, e essa revelação de algo mais verdadeiro, mais intenso, não se dá. Alguma coisa me escapa.
O quadro de Velásquez continua o mesmo, intenso, magnífico sob qualquer ponto de vista. Mas agora sei que ali há algo que é ainda maior, que não consigo nomear, e que me foge invariavelmente.
É essa a sensação que sempre me ocorre diante daquelas obras que se situam “acima das dores do mundo”. Sinto-me na ante-sala do Divino, mas não consigo entrar.
Tudo isso que escrevi poderia ser muito melhor sintetizado por Borges, no fecho de “A Muralha e os Livros”, e que é uma das mais agudas e belas definições sobre o que é a arte:
“A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz, é talvez o fato estético.”

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Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.