“A Origem do Mundo” é pornografia?

Ou, um exercício ficcional proporcionado por um documentário algo tedioso.

Dia desses assistia a um documentário sobre o roubo e a recuperação de três telas (um Gauguin, um Renoir e um Cézanne) pertencentes ao Museu de Belas Artes da Argentina.
Não vi o programa todo, e enquanto assistia comecei a divagar porque o documentário estava um tanto chato.
As telas, com a exceção do Cézanne, eram algo banais, mas foram recebidas com toda a pompa e circunstância pelas autoridades argentinas, como não poderia deixar de ser. Coletiva de imprensa, bancada e microfones para o chefe de polícia que comandou a operação, diretores do museu, curadores, e por aí vai.
O mesmo se deu com as aquelas obras recentemente roubadas e recuperadas do MASP: coletiva, diretor do museu, delegado de polícia, os meliantes com os braços para trás e de cabeça baixa… Todos, menos os últimos, exultantes com o retorno das obras intactas. Notícias nos jornais impressos, na internet, na TV; William Bonner destacando a importância das telas para seu telespectador, carinhosamente apelidado por ele de Homer Simpson (a definição é dele, só reproduzo o que li na Carta Capital). Tudo muito nos conformes, como se diz no interior.
Mas aí pensei no seguinte: e se, porventura, fosse roubado e posteriormente reencontrado o quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet? Como isso seria noticiado? Veríamos todo aquele teatro que se arma quando a polícia perpetra algum sucesso que lhe garanta muita publicidade?
Imaginemos que o quadro citado pertença ao MASP (só para colocarmos a coisa num contexto local). Um dia, a segurança vacila e a tela é roubada. Comoção: um Courbet valiosíssimo foi roubado! Acontece que a tela citada é esta reproduzida ao lado. De que forma o Jornal Nacional noticiaria o fato?
A família brasileira na sala, esperando, ansiosa, o noticioso acabar para ver a novela da Índia. Aparece a Fátima Bernardes informando o roubo de um patrimônio cultural da humanidade. E aí? Mostra-se o quadro ou não?
Talvez coloquem uma tarja cobrindo as partes pudendas, talvez desfoquem a tela, talvez a deixem pixalizada. Ou, o que é mais provável, não mostrem nada. Apenas Dona Fátima lendo a notícia do roubo, informando que “A Origem Do Mundo” está desaparecido.
E o Homer Simpson, que está assistindo ao jornal e que nunca viu o quadro fica imaginando que foi furtado um épico bíblico, o que adiciona sacrilégio à malfeitoria.
Passam-se meses sem nenhum progresso nas investigações até que, graças a uma denúncia anônima, a polícia finalmente encontra a tela roubada numa casa de veraneio no Guarujá. Um caseiro é preso, mas não se sabe quem foram os mandantes, para grande alívio do diretor do museu.
Corta para o Jornal Nacional e para o circo que a polícia arma nessas ocasiões, e o W. Bonner anuncia a solução do caso! Êxito!
A Globo mostra dois policiais vestidos de Rambo segurando a tela, mas o cameraman foi devidamente orientado a não mostrar a tela num ângulo em que possa se reconhecer o que está pintado nela. O delegado responsável afirma que ele próprio, pessoalmente, irá conduzir “A Origem Do Mundo” de volta ao museu.
Mas, pouco antes do final da reportagem, num descuido do cameraman e do sujeito que fez a edição de imagens, pôde-se ver, de relance, o que foi pintado por Courbet…
Para a surpresa de Homer, a tela não era uma ilustração do Genesis 1, 1… Indignou-se: “Mas isso é uma pouca vergonha! Pornografia bem na hora da janta!”
Catástrofe: no dia seguinte a CNBB divulga nota lamentando a exibição pública, ainda que curta e acidental, de semelhante obscenidade. Instala-se a polêmica. Debates inflamados, comentários apaixonados defendendo ou condenando a tela. Boris Casoy acha que é coisa da internacional comunista, já que Courbet era amigo de Proudhon; na Folha, o arcebispo de São Paulo lamenta a mobilização da polícia para encontrar a obra, e o arcebispo de Pernambuco, naturalmente, excomunga o tal de Courbet.
Pressão daqui, pressão de lá, e resolve-se o caso mandando o quadro para a reserva técnica do museu, sem data para que volte a ser exposta.
Em seu lugar, não sem alguma ironia, coloca-se um Romero Brito feito especialmente para a ocasião, numa sessão solene transmitida pelo Fantástico, que termina com o padre Marcelo abençoando a tela, que é colorida e decente.
Homer Simpson, em casa, comenta com a mulher e os filhos: “Isso sim, é uma pintura bonita e respeitosa”.
Termina o Fantástico, com o Zeca Camargo anunciando que a seguir tem paredão imperdível no BBB e logo depois, “Desejo de Matar III”, com Charles Bronson.
“Filmaço!” – exulta Homer – “Vamo vê?”

ps: “A Origem Do Mundo”, de Gustave Courbet pertence, na verdade, ao Musée d’Orsay, e todo esse artigo é, obviamente, um exercício cínico de ficção.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.