Forma ou contexto?


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Há quem ache possível apreciar um trabalho sem saber nada a seu respeito. Há quem ache necessário conhecer todo o seu contexto. Será possível ser tão rigoroso?

Quando estudava artes plásticas na ECA-USP, a concepção estética que imperava ali era formalista. Chegava-se mesmo ao ponto de deliberadamente omitir informações sobre alguns artistas, caso essas informações contrariassem esse ponto de vista. Lembro de um certo professor com sobrenome de filósofo que nunca se referia ao fato de que Mondrian e Mark Rothko, por exemplo, tinham preocupações de natureza espiritual além das formais. Como contrariava seu ponto de vista, isso era omitido. Pode parecer um detalhe, mas não é: é difícil entender Mondrian sem saber disso. E, sabendo, a compreensão do sentido da sua obra modifica-se completamente.
Posteriormente, conheci pessoas que adotavam a concepção contextualista da estética. Algumas radicalizavam e adotavam uma visão que eu chamaria de hagiográfica: as vidas dos grandes artistas eram sagradas e era a partir delas que analisavam seus trabalhos. Portanto, se o sujeito tinha sofrido muito e vivia deprimido, sua obra era, por extensão, triste e sombria. Nem é preciso ir muito longe para perceber que essa abordagem é falsa e simplória. Mas a idéia de que a obra só pode ser compreendida em seu contexto específico é coerente e possui defensores respeitáveis.
Aliás, as duas abordagens, formalista e contextualista, possuem apologistas prá lá de gabaritados. O que tenho dificuldade de entender é a defesa apaixonada, e muitas vezes sectária, de cada lado. O terreno da estética é pantanoso demais para isso, e as construções teóricas são sempre artificiais, na medida em que não conseguem nunca abranger a toda produção estética de quaisquer períodos, e muito menos em contextos culturais distintos. Penso ser impossível adotar exclusivamente uma posição ou outra e não ser insincero em algum momento.
Observe-se o caso do famoso “Casal Arnolfini”, de Jan Van Eyck, datado de 1434, e que, por sinal, já foi chamado de “O Noivado dos Arnolfini”, “O Casamento dos Arnolfini”, “O Retrato de Giovanni Arnolfini e sua Esposa”, entre outros títulos. Foi Panofsky, num texto de 1934, que concebeu a pintura de Van Eyck como uma espécie de certidão de casamento, em função de uma série de elementos simbólicos ali representados. Creio que esta foi, e continua sendo, a interpretação mais duradoura. Mas, de acordo com documentos e evidências posteriores, essa tese parece ser incorreta. Em 1994, descobriu-se um documento datado de 1447 que atesta o casamento de Giovanni Arnolfini nessa data, quando o próprio Van Eyck já havia falecido. A tese da pintura como certidão de casamento caiu por terra, e até mesmo a identidade do retratado passou a ser questionada. Aí se teorizou que o quadro era um retrato póstumo da esposa de Arnolfini, que o Giovanni retratado era um primo de Arnolfini, que era uma alegoria do casamento e da maternidade, até mesmo que esse era o retrato de Giovanni Arnolfini enquanto irresistível sedutor, já que a dama retratada seria uma de suas conquistas.
Resumindo: não sabemos do que essa pintura de Van Eyck trata. Não sabemos se os objetos e a situação ali representada são simbólicos ou não. E, caso sejam, não sabemos exatamente o quê simbolizam. Como também não sabemos do que trata, para usar outro exemplo, o quadro “A Tempestade”, de Giorgione. E exatamente por não se saber quase nada a seu respeito, essa pintura é muito cara aos adeptos do formalismo, como sendo uma das primeiras pinturas completamente autônomas já executadas, e a prova cabal de que não se necessita conhecimento do contexto de uma obra para apreciá-la. Mas esse é um pensamento anacrônico: hoje podemos não saber do que se trata, mas entre os admiradores contemporâneos de Giorgione seu significado não era obscuro. Interpretá-la como uma pintura precursora de Cèzanne ou do abstracionismo é forçar a mão.
E não é só em relação à obra de Van Eyck ou de Giorgione que temos dúvidas em relação ao significado. Michael Baxandall demonstrou de forma definitiva o quão pouco sabemos sobre o significado de QUALQUER obra do Renascimento. O que se dirá, então, de obras mais recuadas no tempo, ou de culturas muito diferentes da nossa, das quais não podemos estabelecer um contexto consistente?
Parece-me, portanto, um exercício de futilidade querer ser rigorosamente formalista ou contextualista. Como também me parece fútil querer que uma teoria estética funcione de modo implacável como funcionam as leis de Newton. Isso é coisa de academia e de acadêmicos, por mais vanguardistas que pretendam parecer.
O formalista parece crer que há possibilidade de interpretação de um trabalho qualquer mesmo que não tenhamos nenhum conhecimento de seu contexto. Relembrando o professor que citei no começo desse artigo, houve uma aula em que um colega jogou uns pedaços de plástico de uma embalagem no chão como se isso fosse um trabalho, que ele não havia feito porque tinha ido tomar umas no diretório acadêmico. O professor chegou e fez uma enorme e erudita explanação sobre as possibilidades poéticas e a exploração semiótica daqueles pedaços de embalagem espalhados no chão. É possível que essa explicação estivesse implícita naqueles pedaços de plástico, assim como muitas outras; mas nós sabíamos que aquilo era apenas o que realmente era: lixo espalhado no chão para tirar onda da cara do professor.
O contextualista acha que, sem conhecer o contexto, nada feito. Se seguir essa concepção de maneira rigorosa, provavelmente só irá apreciar a arte ocidental do século XIX em diante, e mesmo assim com grandes reservas. Tudo o mais está descartado porque o conhecimento do seu contexto é apenas parcial.
Além disso, ambos encontrarão problemas com a obra extemporânea, o que, aliás, é um problema que TODOS os críticos, artistas, teóricos, e interessados em arte de forma geral preferem empurrar para debaixo do tapete, por incômodo que é, e porque coloca em xeque todas as teorias estéticas contemporâneas. Mas isso é assunto para um outro artigo.
Por enquanto, fecho esse texto de maneira bem tucana: se você gosta de um trabalho apenas porque gosta, e por mais que entendidos digam que esse trabalho é uma porcaria, ótimo! E se você resolve se aprofundar e conhecer o contexto em que tal artista executou tal trabalho, ótimo também, mesmo que sua apreciação se modifique e você passe a gostar menos da obra por causa disso. O critério final é seu. Como afirmei no meu primeiro artigo aqui no OPS, arte não é ciência, arte é necessidade. E ponto final.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.