Suscitar acontecimentos By Murilo Duarte Costa Corrêa / Share 0 Tweet Por Murilo Duarte Costa Corrêa Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí Hoje iniciamos uma coluna mensal em O Pensador Selvagem, e nada melhor do que nos dedicarmos a falar um pouco sobre a unio mystica entre esses elementos: o pensamento e o selvagem; elementos que unimos sob o caráter unívoco e, a um só tempo, diferencial (e plural), de alguns nomadismos. A violência que força a pensar é da mesma ordem de uma violência que vem de fora; Michel Maffesoli, já há alguns anos, dissera que é isto um bárbaro: aquele que vem de fora para fecundar um corpo social já esgotado. A barbárie, o nomadismo, como devires micropolíticos, apontam para uma potência selvagem em conexão com um certo vitalismo e com a própria vida, que constitui suas infinitas e contínuas possibilidades de variação de modos de vida; assim é para o antropólogo francês, Michel Mafesolli, bem como para alguns de seus mais importantes predecessores, Friedrich Nietzsche (e seu conceito de vontade de poder) e Gilles Deleuze (e os conceitos de vida e imanência, que se confundem no título de seu último escrito, publicado em 1995, L’immanence: une vie…). O nômade povoa um espaço em contínuo deslocamento pois vive de entretempos, em entretempos; ser nômade, diziam Deleuze e Guattari, é viajar com a potência selvagem de uma linha de fuga; é um modo de existência de alguém que não está lá ou cá, mas continuamente entre-dois. Assim, o nômade está sempre entre um ponto de água, um ponto de caça, um ponto de assembleia, ou um ponto de descanso. A vida do nômade é rizomática, intermezzo. Em seus caminhos, existem apenas pontos, mas os pontos não se sobrepõem às linhas – ao contrário, os pontos, singulares, apenas existem para serem abandonados pela linha, que é, já, uma linha de fuga ou de ruptura, como preferiria a literatura de F. S. Fitzgerald. Entre dois pontos há sempre um trajeto, e o entre-dois, a linha, o traço que vem de fora, tomou consistência, e goza de autonomia e direção próprias. Na medida em que o nômade é territorial, e distribui-se em um espaço liso, Deleuze e Guattari alertam que seria falso defini-lo pelo movimento. O nômade é aquele que, agarrado a um espaço liso, não parte, não quer partir. O nômade sabe esperar e tem uma paciência infinita. Daí, ser necessário, desde Kleist, distinguir velocidade e movimento; o movimento é extensivo (deslocamento relativo ao espaço, que vai de um ponto a outro), e a velocidade é intensiva – de caráter absoluto, como um corpo cujas partes e átomos preenchem um espaço liso à maneira de um turbilhão, como aprazia a física de Lucrécio, podendo surgir em um ponto qualquer. Esse movimento turbilhonar é próprio da máquina de guerra nômade; sua errância é uma questão de fuga, que pode dar-se até mesmo sem sair do lugar em que se está. Pierre Clastres lembrara a precedência etnológica da existência, entre certas tribos nômades, de uma sociedade contra o Estado. A cada vez que um poder potencialmente totalizador se formava, dando mostras de querer formar Estado, povoados inteiros inseriam-se em uma série de pequenos e tumultuosos combates. Assim, acompanhavam uma linha de fuga desorganizando, desarticulando as linhas de segmentariedade dura ou molar (ou de Estado), em benefício de “n” articulações, de uma multiplicação de possibilidades, ainda que aparentemente a empiria mostrasse exclusivamente destruição, abolição e decadência civilizacional. Então, por que falar em alguns nomadismos? Por que reivindicar como abertura – como me parece que O Pensador Selvagem tenciona – um espaço micropolítico nômade a partir do qual pensar? Contemporaneamente, trata-se de questionar-se a respeito das trincheiras que temos cavado no tempo presente e no próprio real; que linhas nos atravessam: de segmentariedade molar ou molecular? Quais delas servem a um devir, quais delas servem a uma prudente desarticulação? De que devires somos capazes? Como temos afrontado o presente, e de que forma poderíamos fazer uso da memória e da história para confrontar o atual? Não se trata de negar o atual, mas de entrevê-lo desde uma perspectiva do contemporâneo – aquela em que a experiência é como a descrita por Agamben: arrostar o feixe de trevas que, longe de constituírem uma negatividade, nos afetam e concernem. Tudo se torna uma questão de prudência na fuga de velocidades, pois as trevas daquilo que vem não constituem uma pura ausência de luz, mas intensidades presentes em uma velocidade absoluta, indiscernível, imperceptível. Por isso, alguns se espantam ao se depararem com perguntas deleuzianas aparentemente sem sentido. Uma das mais correntes é “O que se passou?”. Não se trata da interrogação de um absorto, mas de um perscrutador de devires, de um suscitador de acontecimentos, que asculta a positividade potente daquilo que ainda não…; isto é, do virtual, de um presente ou de um contemporâneo aberto aos devires. O que significa dizer: cumpre-nos um tempo presente não separado daquilo que o nosso tempo pode; e não seria precisamente isso a abertura – suscitar acontecimentos?