Da grana que ergue e destrói coisas belas

for the love of god

O crítico Robert Hughes escreve em algum lugar que sua geração foi a última a entrar num museu sem se perguntar quanto custava cada obra.

Mesmo o mais focado dos connoisseurs dos dias de hoje teria dificuldade em dirigir-se a uma mostra de algum artista consagrado e permanecer alheio às questões monetárias que envolvem a mesma.

Imagine-se uma grande exposição com pinturas de Francis Bacon, por exemplo. Imagine-se um pouco mais: tal exposição acontecerá no Brasil. Todas as mídias destacarão as cifras envolvidas, a custosa operação logística levada a cabo para a realização de tal exposição, os valores estratosféricos do seguro das obras, o aparato de segurança disponibilizado. Os envolvidos, diretores do museu e curadores, darão depoimentos sobre a ocasião única, especialíssima, de se poder ver reunida boa parte da obra do muito conceituado pintor, e lembrarão, mais uma vez, a cifra na casa dos bilhões ali envolvida.

Claro que uma grande exposição retrospectiva de um artista como Francis Bacon no Brasil é um absurdo evidente. Quando muito, tem-se uma mostra com um ou dois quadros, exatamente em função dos valores envolvidos numa tal operação.

Hughes lembra que essa questão do dinheiro já começa a surgir nos anos 60s, mas que tem uma inflação magnífica a partir do final dos anos 80s, quando da venda d’Os Girassóis, de Van Gogh, ou, noutras palavras, quando os japoneses entraram no mercado. Desde então, a etiqueta com o preço da obra passou a ter tanta importância quanto a própria obra. E, dado que grande parte dos colecionadores pesados vem do mercado financeiro, a especulação torna-se um jogo tão ou mais prazeroso do que a posse da obra. O mercado torna-se a obra de arte. Artistas como Damien Hirst e Jeff Koons entenderam muito bem a nova ordem. Outros, nem tanto.

Daí que falamos de arte e falamos de dinheiro. Deveria ser assim? A resposta certamente seria um rotundo não, entretanto não é exagero afirmar que o circuito artístico consideraria essa resposta ingênua.

Relacionamos arte com beleza, com o sublime, com profundidade, com o inefável. Mas a ligação mais antiga da arte, ao menos no período histórico, é com a ostentação. Sempre foi um atributo dos ricos e poderosos. Exibir a obra única, rara. A obra feita com materiais nobres, raros. E esses materiais manipulados pelos mais qualificados artesãos, também raros. Tudo para veicular a dimensão do poder do patrono. A beleza, o sublime, o inefável são qualidades secundárias, quase como um efeito colateral. Difícil até de se imaginar tais atributos num mundo de mentalidades tão brutas, tão primitivas no seu afã exibicionista.

Por muito tempo, os únicos patronos foram sacerdotes e príncipes: oferendas votivas e monumentos comemorativos eram as obras exigidas. O artista fabricava e tornava visível o poder de magos e reis. Seu status, entretanto, é baixo. Escribas egípcios deixaram registrado o desprezo das classes dominantes pela figura do artista.

Dando um salto magnífico no tempo, burgueses enriquecidos do século XV tratam de emular os signos de riqueza e poder antes garantidos apenas aos nobres. Compram a obra única, fabricada com materiais raros por um artista/artesão habilidoso. Importante é exibir a riqueza material na obra: ouro e azul ultramarino, extraído do lápis-lazúli são claramente especificados nos contratos de encomenda. Já no início do século XVI percebemos uma importante modificação nos contratos: conta menos o material empregado e mais o nome do artista empregado. É um modo mais sofisticado de se encarar a arte.

Damien Hirst, sempre ele, em 2007 realizará a síntese hegeliana entre essas duas concepções de obra de arte, com o seu For the love of God, um crânio recoberto com 8601 diamantes: o nome mais célebre cria a obra materialmente mais cara (14.000.000 de libras). Talvez tenha sido vendido por 50.000.000 de libras.

Faço uma conta grosseira: os mais antigos registros artísticos datam de 45.000 anos atrás. Nossos registros históricos, 5.000 anos, um pouco mais, talvez. Por 40.000 anos pelo menos, o ser humano produziu arte por algum impulso desconhecido e irrefreável que não o vil metal. Não sabemos de suas intenções ou motivações, mas fama e conta bancária gorda não estavam entre elas.

Curadores, galeristas e (muitos dos) artistas consideram o circuito artístico um jogo de regras tácitas e mutáveis, de complexa decodificação. A graça está no jogar esse jogo, e não nesta ou naquela obra, e não neste ou naquele artista. É um jogo excitante de especulação, de criação e destruição de artistas tão célebres quanto efêmeros.

Para quem não é do circuito nem joga o jogo, resta apenas o grafiti.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.