Hypocrisis By Luiz Afonso Alencastre Escosteguy / Share 0 Tweet Há defesas e defesas. Na realidade, uma das grandes jogadas da inteligência humana é criar sistemas de premissas – em casos mais exagerados, dogmas – que sirvam de base para qualquer tipo de defesa, ou ataque. Muitos, inclusive, servem ao mesmo tempo para defesa e ataque. Sistemas de premissas são suficientemente amplos e orgânicos, de tal sorte que posso escolher um subconjunto de premissas para atacar e outro subconjunto de premissas para defender. Ambas pertencem ao mesmo sistema, o que mantém a lógica toda da coisa. Simples, banal, todo mundo sabe disso. Mas como tudo criado pelo ser humano é sempre um sistema aberto, as falhas acontecem; e é possível perceber que subconjuntos de premissas tidos por orgânicos – usados para ataque e defesa – não são assim. É o caso da recente e ainda quente reintegração de posse de Pinheirinhos, em São José dos Campos, SP, levada a efeito da maneira como todos puderam acompanhar. O subconjunto de premissas usado também é conhecido como sistema jurídico. É um poderoso sistema de ataque e defesa, contendo, inclusive, potentes premissas de autoproteção, como, por exemplo, o “tudo deve ser feito para manter a segurança jurídica”. Em nome da segurança jurídica usa-se o argumento de que “lei é lei, ordem de juiz é ordem de juiz”. “A Justiça decide e manda o oficial de Justiça fazer o cumprimento da ordem judicial.” Nos informa, a título de defesa, o Governador do Estado de São Paulo, selecionando as premissas… Esquece-se o governador de que poderia utilizar outras… E assim se defende a propriedade – que, diga-se de passagem, o mesmo sistema dita que deve ter a sua função social – para atacar cidadãos. O mesmo sistema é usado para justificar o uso da força alegando que houve resistência, mas não esqueçamos que o sistema também nos diz que resistir é um direito de todos. Dois pesos e duas medidas. O mesmo Estado Democrático de Direito, com base nas premissas do sistema jurídico, criou o Estatuto da Criança e do Adolescente e o mesmo Estado descumpre a regra maior. Copio aqui os artigos iniciais do ECA: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. É um texto forte, originado em mentes sérias, conscientes de que somente com a proteção integral das crianças poderemos ter um país digno de ser chamado de pátria por todos, um dia. E esse mesmo Estado Democrático de Direito aponta as “armas da lei” contra as crianças. Submete-as a tudo quanto ele, o Estado, nos diz no ECA que não podemos submeter uma criança. Tira-lhes o “desenvolvimento moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”; tira-lhes a “convivência familiar e comunitária”; trata-as com “violência, crueldade e opressão”. Falha nosso sistema jurídico e seus operadores; e falham os governantes. Ambos por usarem conjuntos de premissas que todos sabemos não são mais orgânicos. Pinheirinho foi a prova cabal de que desta vez não há defesa!