Hypocrisis By Luiz Afonso Alencastre Escosteguy / Share 0 Tweet Uma das artes mais difíceis para os seres humanos é a de evitar fazer julgamentos apressados, movidos pelas emoções que as situações despertam. Ter paciência para esperar que todas as circunstâncias apareçam, para daí então, realizar um julgamento o mais racional possível, está cada vez mais complicado. Tentei fazer fazer isso no caso do atropelamento dos ciclistas, ocorrido semana passada em Porto Alegre, apesar de ter ficado, como todo mundo, extremamente chocado, revoltado e impossibilitado de entender como alguém teve a capacidade de fazer aquilo. O primeiro apelo para a razão é de que o motorista do veículo estivesse drogado ou alcoolizado. Sumiu três dias para evitar o flagrante e a comprovação do estado alterado. Mas eis que a família e o advogado contratado para defendê-lo se apressam. Em matéria de hoje, 28/02, no portal ClicRBS (aqui) dizem que ele teria agido em “legítima defesa”, pois “ameaçavam virar o caro”. Que fez tudo isso em defesa do filho de 15 anos (uma “criança”, como consta na notícia). Diz a mãe da “criança”: “Tudo começou com ciclistas que até aparecem nas imagens. Eles quebraram os vidros, bateram no carro. Ele buzinou e saiu, só porque tinha uma criança, meu filho de 15 anos, junto. Não botou por cima, senão tinha matado todo mundo. Ele fugiu das agressões”. Coincidência, o fato ocorreu na rua José do Patrocínio quase esquina com a Luiz Afonso, rua que brinco dizendo que o nome foi dado em minha homenagem, por volta das 19:30h de sexta-feira. Passo por lá todos os dias ao voltar para casa. A José do Patrocínio é uma via de trânsito intenso, utilizada por linhas de ônibus, lotação e automóveis que se deslocam do centro para os bairros Menino Deus, Azenha e outros dessa região. Mas há alguns detalhes importantes a serem lembrados: 1. mesmo durante a semana “normal”, o fluxo de veículos diminui consideravelmente após às 19 horas; 2. era uma sexta-feira de verão, onde boa parte das pessoas (principalmente as que têm carro), já está a caminho das praias; 3. quem conhece, sabe que mais alguns poucos minutos e o motorista poderia dobrar à esquerda na Luiz Afonso, pegar a João Alfredo e logo pegar a Lopo Gonçalves ou a Joaquim Nabuco e retornar para a José do Patrocínio à frente dos ciclistas; 4. nos diversos vídeos mostrados pela internet (aqui, um bem longo e detalhado, divulgado no blog do movimento – Massa Crítica), é possível ver que até ônibus estavam andando atrás do grupo de ciclistas, esperando pacientemente. Afinal, eles não estavam parados, mas andando a uma marcha talvez até mais rápida daquela a que estão acostumados a andar nos dias de engarrafamento. Ou seja, em questão de não mais do que cinco ou dez minutos, já teriam atigido a Venâncio Aires e aí, muito provavelmente, o motorista poderia continuar seu caminho tranquilo. Com certeza (??) tudo isso será apurado nas investigações. Mas daí a dizer que fez o que fez “em legítima defesa”? Até Buda, na sua eterna paciência, teria se levantado indignado com uma desculpa dessas! É possível que tenha sido provocado por algum ciclista? Até é. Mesmo entre um grupo que sai às ruas em defesa de um trânsito pacífico podemos encontrar gente “esquentadinha”. Que fosse! Mas teria reagido nem que seja a uma primeira buzinada do impaciente motorista. Justifica fazer o que fez? De forma alguma! Isso tudo sem citar os aspectos jurídicos da legítima defesa, prevista no artigo 23, II, do Código Penal. O artigo 25 do memso código diz: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Vai ser difícil, esperemos, comprovar que atropelar quase uma dúzia de ciclistas de maneira violenta guarde alguma relação com “usando moderadamente os meios necessários”. Quando pensei em escrever sobre a hipocrisia cotidiana não imaginava ter um exemplo extremo em tão pouco tempo de coluna. Havia resolvido aguardar o desenrolar das investigações, mantendo a vontade de não mais “julgar” movido pela emoção. Mas diante das manifestações é impossível. A que ponto chegamos! Acompanhem o caso no blog Massa Crítica. [atualização]: os pensamentos ficam remoendo na cabeça e à medida em que a gente vai lendo as notícias e/ou comentários aqui e ali, fica difícil não escrever. Corre solto na internet um questionamento: terá sido culposo ou doloso o crime cometido. É um questionamento prematuro, a meu ver, posto ser uma análise difícil que, esta sim, não pode ser feita à luz das emoções. O dolo envolve a vontade de cometer o ato, consciente ou não. Vai ser complicado demonstrar isso. Mesmo porque, uma vez que tenha afundado o pé no acelerador, provavelmente o motorista também tenha tirado, do seu cérebro, a consciência do que poderia acontecer. Não é de todo implausível a hipótese. Tudo aconteceu em questão de segundos. Será, com toda certeza, um argumento utilizado pela defesa para caracterizar a culpa e não o dolo. E por favor, a análise é objetiva, isenta de emoções. Por outro lado, todo motorista sabe que possui uma arma em suas mãos e que o seu uso fora das condições normais para a qual foi fabricada implica em consciência do que está fazendo com ela, portanto, na vontade de causar o dano que causou, não importando se a uma ou a uma dúzia de vítimas. Também, uma vez que tenha visto gente rolando por cima do seu carro, qualquer pessoa imediatamente pararia, ao invés de continuar correndo e atropelando mais gente. O que demonstraria, mais uma vez, a consciência de que fugir a qualquer custo era o que importava. Por sinal, comportamento típico de criminosos conscientes do crime que praticam. Fugir. Mais um menos um, nessas horas, é o de menos. Mais ainda se estivesse drogado ou alcoolizado. Ser culposo ou doloso, vai importar na pena a ser aplicada. O crime foi, no mínimo, de lesão corporal de natureza grave, pois importou em perigo de vida (atr. 129, p. 1º, II). Pode-se tentar argumentar a favor do homicídio tentado, mas isso deve ser deixado para os juristas, não? [atualização 2] Para registro, o motorista, ao sair do depoimento prestado à Polícia esta tarde, disse: “Eles me agrediram. Eu tive que fazer isso” (daqui). BEm que diz aquela frase “tudo o que você disser poderá ser utilizado contra você”. Ele não “tinha” que fazer isso. Existiam alternativas: ligar para a EPTC, para a Brigada e até parar o veículo, o que chamaria atenção dos demais motoristas para a suposta agressão que estaria sofrendo e, com isso, fazer um furdunço na rua, o que faria cessar a agressão que disse estar sofrendo por parte dos ciclistas. Qualquer coisa, menos “ter” que atropelar, “ter” que usar o automóvel como uma arma. O motorista declarou que “quis” agir assim. Dificilmente escapará (até mesmo porque o caso será permanentemente acompanhado – tanto o Ministério Público, quanto a Justiça – e haverão de ser cobrados por celeridade) de uma acusação de tentativa de homicídio culposo. O que até agora não apareceu nas notícias, é se já cassaram a carteira de motorista dele. Vai responder em liberdade dirigindo por aí? [atualização 3] Pedida a prisão preventiva do motorista pelo Ministério Público. Segundo a notícia, ele “tem multas por dirigir na contramão, em cima da calçada e outras infrações graves” (daqui). Segundo o promotor de Justiça Eugênio Amorin, “o caso foi um crime doloso (com intenção de matar) e duplamente qualificado, por ter sido cometido por motivo fútil e por um meio que impossibilitou defesa das vítimas”. Se condenado, ainda perderá o cargo público que exerce…