Emily

           O Romantismo se inventou, se patenteou e foi êxito absoluto. A obra romântica permite ao sujeito poeta extravasar até o limite do impossível. É o exercício do desejo escondido que pode ser canalizado para verso e prosa, que pede morte, escuridão e todo o sentimento que se possa carregar. Mas reparem no paradoxo: se o sentimento pode expor-se sem reserva – porque a época o permite – onde sobra espaço para a maldição?

Então o sujeito romântico se auto-exila, blasé, blasé… e cria essa maravilhosa atitude de amar inconteste, de sofrer inevitavelmente e de descrer sempre da vida, pois há uma incompatibilidade entre o ser e o estar. E a morte, então, pode se tornar uma espécie de noiva, a mais esperada.
Mas, enquanto a amada não chega, as noites ébrias são um cálido paliativo.
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Há vários tipos de maldição, mas principalmente duas que não se excluem necessariamente: a maldição que grita, composta por aqueles cuja vida, às vezes, é mais importante que a poesia, e a maldição que se constitui principalmente no isolamento, na transgressão, na impossibilidade de “fazer parte”.
A base do escritor maldito é observada pelo simbolista Paul Verlaine que escreve, em 1888, Os poetas malditos, numa auto-referência estendida também a Rimbaud, Mallarmé e dois ou três mais. Esta lista de nomes se ampliou bastante, mas o que importa é o sentido que o poeta dá ao termo: poeta precoce que renega os valores da sociedade e muitas vezes vem a morrer antes de ter seu talento reconhecido, etc.
Bom, já se sabe disso, mas neste caso preciso relembrar, pois só assim posso falar de Emily Dickinson, uma romântica que extrapola o Romantismo e que, assim como Poe, Whitman, Blake, para falar só de norte-americanos, está além de qualquer estética estabelecida.
Faz pouco estive num debate sobre ela. Nunca havia lido além de meia dúzia de poemas que me tocaram pouco. Então, o que essa moça insípida da Nova Inglaterra faz neste espaço sobre escritores malditos? Bom, qualquer pessoa que conheça e aprecie a obra de Dickinson deve estar me chamando de tonta agora. Eu mesma penso isso.
Depois de ler um longo e apurado estudo sobre a poeta, fiquei literalmente estática com a contundência do seu texto. Não, contundência não é uma palavra boa. Poderia ser se se falasse da obra como um todo, mas não da maneira como Emily escreve, como algo que mal se toca.
Pois é isso: Emily não é Verlaine, nem Rimbaud, nem Baudelaire. Mas poderia. Outra vez se pode falar sobre ser mulher em determinadas épocas – sem qualquer ranço de estudo de gênero. Sem a liberdade de varar noites entre copos e orgias, as mulheres malditas geralmente são malditas porque escrevem. Simples assim.
Imagine-se uma jovem de família rica e tradicional que se isola para escrever em pleno século XIX. Há, inclusive, teorias que consideram que o fato de haver se isolado foi a origem de sua escritura. Parece banal, mas isso significa dizer, no caso, que sem o isolamento, ou a bolha que ela criou para si, não conheceríamos jamais Emily como poeta. Sua crescente sensibilidade – que beira ao autismo – exigiu isolamento e o isolamento fez nascer a artista.
Higginson, umas das poucas pessoas que teve acesso ao mundo privado de Emily, dizia que ela o assustava. A mim assusta também. Tremendamente. Seu hermetismo, tão coerente com sua psique – se reveste de tantas capas que a poesia pode parecer superficial numa primeira olhada. Aí se lê mais uma vez. E outra. E outra. E então aparece o abismo.
Não sei se dá pra separar a vida de Emily de sua obra. Mas, por outro lado, ler o pouco que há sobre ela é ler o sujeito lírico (ou o autor implícito se consideramos suas cartas). Mas no fim, tudo é literatura e tudo é incrível na obra dickinsoniana.
E, sejamos coerentes, que escritor maldito prescinde a vida da escritura?
 
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Rosane Cardoso: 200 anos de Poe