Dostoievski


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Dostoievski é maldito? Essa pergunta não é retórica. Muito menos didática. Realmente fico me perguntando se posso colocá-lo neste espaço e em que nível posso qualificá-lo como maldito. Principalmente pelo atrevimento que significa falar deste russo pra lá de complicado.
Antes de começar este texto sobre Fiódor Dostoievski (1821-1881), tive vontade de simplesmente colocar toda a primeira parte de Memórias do subsolo e deixar que isso fosse tudo. E realmente o é. Eu sou um homem doenteUm homem mau. Um homem desagradável. Cito de memória. Venho tentando escrever de maneira que além de, digamos, “homenagear” os escritores malditos, também situá-los nesse âmbito e, a partir daí, prestar meu culto, de certa forma. Só por isso posso falar de Dostoievski, um escritor que li muito e devagar, mas que é um enigma absoluto para mim. De certa forma, me custa um pouco “desvendar” seu texto. Às vezes, os acadêmicos, temos a pretensão de achar que vamos ir tão fundo que não restará mistério, apesar de dizer que nenhum grande escrito é totalmente decifrado.
Já falei de outros abismos aqui, do poço sem fundo em que somos jogados, quando iniciamos a jornada de uma obra que nos toma, mais do que alicia. Essa é minha história de leitura de Dostoievski. Todas suas obras foram pegas e relegadas por mim, pegas outra vez e relegadas de novo. Até a necessidade de ler se tornar inadiável. Este russo nunca faz com que eu me sinta bem. Talvez seja perda de tempo dizer que é um dos romancistas mais importantes da literatura universal, falar do seus vícios, da escritura febril que exercia para pagar dívidas de jogo, as fases de sua obra entre genial e esquecível, o fenômeno realista. Porém, sabemos que Dostoievski está na profundidade com que vasculhou o mais fundo dos nossos corações e mente e o quanto está imbricado com Nieschtze e Freud. Mas não é novidade que os grandes escritores são também grandes filósofos. Dostoievski não foge à regra, sendo considerado inclusive o fundador do existencialismo. Lendo o seguinte trecho de Memórias do subsolo, pouco se precisa justificar essa denominação:
O homem seja ele quem for, sempre e em toda parte gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo lhe ordenaram a razão e o interesse; pode-se desejar ir contra a própria vantagem e, às vezes, decididamente se deve (isto já é uma idéia minha). Uma vontade que seja nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, a nossa própria imaginação, mesmo quando excitada até a loucura – tudo isto constitui aquela vantagem que deixei de citar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar…
A angústia do protagonista de Memórias aparece igualmente em Raskolnikov, nos irmãos Karamazov, na idiotice de Míchkin ou na obsessão destrutiva de Nastácia, na dubiedade bem intencionada de Rogójin (sim, adoro O idiota, obra que me fez conhecer Dosta). É a certeza de necessitar fazer algo, mas fazê-lo significa chegar à dissecação. E agora, que há?
O realismo dostoievskiano é puro. Se, por um lado, delineia a sociedade, acusa, expõe, por outro sua análise psicológica, tão cara à estética realista, se afasta do distanciamento do analista que mira a seu paciente. O narrador de Dostoievski está ali, sentido e fazendo sentir profundamente o drama de seus homens e mulheres. Mas também desce tão fundo que igualmente temos de deixar o confortável divã de onde vemos as personagens. Com Dostoievski elas deixam de passar na nossa frente. O realismo humano não é um filme que canaliza nossas dores. Somos também a angústia e a pergunta. Dostoievski é uma estética por si.
Certo, isso não o faz maldito. Para isso está sua vida e o modo de dizer. O que me ocorre é que me parece redutor agora colocá-lo em qualquer sistema. Então, que se saiba que assim se pode vê-lo. E ponto. Se acaso acham que não pode ser assim, terão de voltar a ler o excerto logo acima.
No Brasil, as melhores traduções de Dostoievski têm sido as de Boris Schnaiderman.

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Rosane Cardoso: 200 anos de Poe