Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Vivemos num mundo saturado de imagens. São imagens impressas. Nas revistas, nos livros, nos panfletos publicitários, nas fotografias emolduradas pregadas à parede, nos porta-fotos colocados sobre a mesa do escritório. Os mais afortunados possuem imagens originais penduradas nas paredes: são pinturas, são gravuras, são desenhos, são fotografias mais uma vez. E quando saímos à rua, são os letreiros das lojas, as propagandas nos outdoors, nos pontos de ônibus, nos próprios ônibus, nos carros, nos caminhões, nas roupas das pessoas, no chão das estações de metrô, na carcaça dos trens do metrô, e por aí a coisa segue. São também imagens luminosas, que hoje podemos confundir com as imagens digitais, como as que vemos na TV, na tela do celular e do tablet, no monitor do computador, na tela do cinema, no telão do estádio de futebol, no telão do show da megaestrela pop, no anúncio luminoso, no letreiro de neon, no porta-fotos digital, nos óculos de realidade virtual. Criamos uma espécie de mundo vicário, um mundo que ao mesmo tempo intermedeia e barra o acesso ao mundo Real. E este mundo de imagens acaba por tomar o lugar do mundo que estou a chamar de Real. É difícil imaginar que já houve um tempo em que imagens eram escassas. Em que havia sede de imagens, qualquer uma. Torna-se difícil o próprio ato de imaginar, que por definição é criar uma representação, uma imagem mental. A visualização interna, exercício corriqueiro, consciente, de um indivíduo dos séculos passados (pelo menos, de uma parcela de indivíduos), murcha, definha diante de tantos estímulos sensoriais. Não precisamos imaginar: temos imagens externas de sobra para consumir de acordo com nossos desejos. Imagens para excitar, imagens para relaxar, imagens chocantes, imagens tocantes. O mais importante: imagens que me fazem querer. Querer o quê? Se não me permito o exame interno, profundo e minucioso da minha psique, do meu lugar no mundo, do meu lugar na Existência, não sei o que quero. Não sei o que desejo. Precisarei que alguém me diga o que desejar. A Apple, muito provavelmente, o fará. Bem como o Google, a Amazon, o Facebook. Me ensinarão a querer. Qual será a consequência disso tudo para a introspecção? Também ela irá definhar? E será que lamentaremos isso, ou já teremos chegado a um ponto em que nem lembramos dela? Porque a introspecção não é um atributo natural, e nem é tão antiga assim. Temos testemunho de seu nascimento nas Confissões de Santo Agostinho. Pois o estímulo que conduziu os seres humanos à introspecção, ao ato de estar consigo mesmo, pode muito bem estar em vias de se extinguir, se é que extinto já não está. Sendo o Tempo uma máquina de moer carne, destruir planetas e extinguir estrelas, não faz muito sentido lutar contra ele. Os séculos se sucedem, os seres humanos se acumulam e morrem, mas a Espécie segue em frente, impetuosa, a despeito de qualquer rumo que queiramos impor. Lamentar pela perda disso, louvar o surgimento daquilo, é tudo tolice. O Tempo segue devorando tudo. O que me parece assustador nessa questão da superabundância de imagens do mundo pós-moderno e pós-verdade é que por trás de toda essa (quase) infinita excitação sensorial a que nos expomos está subjacente um único imperativo, reiterado e reafirmado com gravidade de mandamento bíblico: CONSUMIRÁS, A DESPEITO DE TUDO. E assusta, mais ainda, o fato de que muitos, muitos mesmo, milhões, bilhões provavelmente, concordem com isso com toda a força e intensidade de seus espíritos. Neste espaço tentarei percorrer alguns trechos desse universo de imagens que nos cerca, nos excita e nos deixa perplexos para, quem sabe, extrair daí algum significado mais ou menos relevante.