Era de mitos


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Vivemos numa era de mitos.

É uma consequência lógica de um mundo pós-verdade. Virtualidades levam a um afastamento do mundo real, e quando esse afastamento se esgarça demasiado, quando o nome das coisas é descolado das próprias coisas, estamos lascados.

Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia. Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai (Ezra Pound). É um outro modo de se dizer que, quando usamos nossa língua com descaso, nossa possibilidade de civilização vai embora com o vento.

No lugar da história entram os mitos. Trato de um deles, muito caro aos paulistas: o mito do bandeirante.

O interior do Brasil é obra deles. Caçando os negros da terra, caçando negros africanos, combatendo espanhóis, procurando riquezas, entraram no coração das trevas do Brasil. Um primeiro movimento de se olhar para dentro, muito diferente do olhar para a Europa dos habitantes do litoral, os costeiros. Com coragem, cobiça e brutalidade em doses extremas, penetraram as terras que ainda não eram Brasil, e geraram goianos, mato-grossenses, mineiros e outro tanto de nordestinos. O interior do Brasil é paulista. É, portanto, conservador, tradicionalista e religioso.

Um viajante estrangeiro do século XIX espantou-se com os modos dos paulistas quando aqui esteve: gente rústica e brutal, violenta, muito além de qualquer medida. Não conheceriam, os paulistas, nenhuma outra forma de relação que não a de senhor/escravo. Um dá ordens e outro as obedece. Assim se ordena o mundo, de acordo com o paulista: o senhor manda no escravo, o homem manda na mulher, o pai manda no filho, o mais poderoso manda no remediado, e assim por diante. O viajante teorizou que esses modos brutais se davam pelo isolamento de São Paulo. Paulistas conheceriam apenas a dominação como maneira de relacionar-se uns com os outros, e o cu do Judas que era São Paulo destacaria esse caráter bruto nos seus infelizes habitantes.

Fica evidente nessas formas de relacionamento que a violência está sempre presente, de maneira concreta ou como possibilidade. Mas inevitavelmente presente.

Posteriormente, o mito do bandeirante foi cultivado em diversas circunstâncias, como no movimento de 1932, em 1964 e mesmo depois. Quando eu fazia o primário, no fim dos anos 70s, os bandeirantes eram vendidos como heróis quase apolíneos. As famílias quatrocentonas sentem orgulho em ostentar sobrenomes como Bueno da Silva, Paes Leme, Siqueira Afonso. Movimentos tradicionalistas paulistas cultuam o bandeirante: não é acaso que quase a totalidade desses movimentos seja de ultra-direita e que a maioria deles se alinhe junto a movimentos neo-fascistas e neo-nazistas. E há os inesquecíveis monumentos: o Monumento às bandeiras, famosíssimo como “Deixa que eu empurro”, de Brecheret, e o famigerado Borba Gato, de Júlio Guerra, tão gigantesco quanto rígido.

O futuro presidente do Brasil, o candidato fascista, é nascido no interior de São Paulo. Ele é a personificação moderna dessa violência bandeirante de que tantos se orgulham. É a voz daquela zona obscura, profunda, primeva, reptiliana que reside em nossos corações brutais. Para convivermos sem nos matarmos, abafamos, sublimamos, recalcamos ou, preferencialmente, transmutamos essa voz. Transformamos nossa escuridão em arte, em literatura, em teatro, em música, em cinema. A esse processo chamamos Civilização.

Não é um processo conhecido pelo futuro presidente fascista nem por seus apoiadores.

O coração das trevas está com ele e com os seus.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.