As aparências enganam?

As aparências nunca enganam. Nossa leitura delas é que pode ser ruim.

Somos de uma fidelidade canina no que diz respeito aos nossos ódios. Traímos o ser amado; o odiado, nunca. Daí que lembramos com facilidade o erro, a falta, o deslize, o ridículo, a malvadeza do outro. Não somos tão bons para lembrar das suas virtudes.

Discussão atual é sobre o direito de esquecer. A Rede perpetua o menor dos deslizes. O sujeito comete um deslize, reitera a própria bobagem postando no Facebook o testemunho visual da merda que fez, e pronto: a coisa espalha-se pelo mundo todo, em questão de minutos. (Não vamos nos esquecer de que há um tipo mais grave de ato, cometido à revelia da, neste caso, vítima: como quando um indivíduo canalha posta fotos íntimas da ex-namorada por vingança por ela o ter trocado por outro. É crime, sem mais.)

Às vezes a coisa é apenas engraçada e inofensiva. Em outros casos, a repercussão é grande, pesada e negativa. E o testemunho dessa mesma coisa ficará vagando pela Rede, assombrando o perpetrador de quando em quando. Daí que se invoca o direito de esquecer.

No registro benigno da História, com maiúscula, fica apenas a memória dos poderosos, dos que foram os donos do poder. Se temos registros de algum Zé ou Maria Ninguém, é porque descumpriram alguma regra mesma desses donos do poder. É o caso de um inquérito miraculosamente preservado, uma nota em algum diário recordando uma anedota qualquer, uma entrada num inventário de bens, coisa desse tipo. Leonardo da Vinci anota num de seus cadernos a conversa que teve com um criminoso que seria executado no dia seguinte. Entusiasmado, comenta com o infeliz que irá dissecar seu corpo após o enforcamento. E registra o nome do indivíduo, o que, de outro modo, ficaria esquecido.

Há também as chamadas mugshots, registros fotográficos de criminosos, que são um tipo curioso de imagem. A mugshot é um retrato, isto é certo. Retratos são imagens negociadas: o retratado quer ser eternizado de uma determinada maneira, e o retratador, seja ele um pintor ou fotógrafo, tem suas próprias ideias. Haverá uma negociação tácita em que se pesará a autonomia e a importância (ou a fama) do artista e a importância (ou fama) do retratado.

Na mugshot, não há negociação: captura-se a imagem daquele que foi flagrado infringindo a Lei sem outra consideração que não o registro fiel do infrator. Este, quando célebre ou, enquanto infrator de pouca eficiência, escolado na arte de ser apanhado pelo Estado, pode zombar da situação, rir sarcasticamente, fazer careta como se fora criança, debochar, tomar uma atitude desafiadora ou qualquer coisa do gênero, mas ainda assim pode-se perceber que a tomada da imagem é feita a despeito de qualquer pretensão, digamos, social, do retratado. O fotógrafo da Lei cumpre sua atribuição, e pouco se importa com o indivíduo que se posta diante de sua câmera.

Uma foto de identificação criminal é o testemunho de um fracasso. Um crime que não deu certo, uma noitada que acaba num deslize não programado, um excesso de força, um momento de apagão moral, um momento em que se esquece que o Estado pretende tudo ver, tudo pesar e tudo enquadrar. Enfim, algo falhou.

Usualmente, fazem-se duas tomadas do infrator: de frente e de perfil. Por algum motivo, acabei por ligar essas imagens de perfil com alguns retratos dos inícios do Renascimento, mais especificamente com os retratos de Piero della Francesca e de Pollaiuolo, ou mesmo com algumas figuras da família Gonzaga, retratadas por Mantegna.

Tentei traduzir-me o sentido dessa ligação. Intui que Piero e o esbirro transformado em fotógrafo possuem ao menos uma coisa em comum: uma certa intenção de transparência. Parece-me que fogem dos psicologismos tão recorrentes na retratística, e simplesmente atém-se naquilo o que importa, a aparência. E pode haver algo mais contemporâneo do que isso? Pois o que define nossos tempos senão a aparência? Claro, se eu me fizer de rigoroso, a sinceridade me obrigaria a afirmar que a aparência define todas as eras da civilização ocidental, e não só os tempos correntes. Daí que uma época em que a moda é muitas vezes mais importante e influente do que a arte talvez seja a mais sincera de todas, na medida em que abole qualquer intenção de profundidade.

De qualquer forma, há um liame conectando o mais alto da produção artística e o mais baixo da produção fotográfica. Um fio que liga os fotógrafos anônimos a serviço da Lei e gente como Van Eyck, Dürer, Holbein, Rembrandt, Velásquez, Goya, Ingres, Bacon, Freud e Auerbach.

Por que, factualmente, o que há além da aparência? O que há além da superfície? Nada. Não há nada. Não há nada para o pintor, nada para o filósofo, nada para o neurocientista, nada para os padres, nada para os pastores. O que há por trás de cada face continua sendo inescrutável como o era há dois, três, vinte mil anos, e assim continuará sendo. Não há profundidade. Não há algo como um local que se possa chamar de núcleo do ser, de “residência do espírito” ou algo semelhante. Em A visão em paralaxe, Slavoj Žižek cita o neuropsicólogo Paul Broks:

Mas o que descobrimos naquele espaço atrás do rosto, quando olhamos? O fato bruto é que não há nada além de substância material: carne e sangue e osso e cérebro. (…) Você olha dentro de uma cabeça aberta, observa o cérebro pulsar, observa o cirurgião puxar e sondar, e entende com convicção absoluta que não há nada além disso. Não há ninguém ali.

O deslize perpetua a imagem de algum infeliz. O agente da Lei cuida para que sua imagem seja o mais objetiva possível. Quando faz isso, nos fornece uma chave para compreendermos melhor o mundo de aparências pelo qual nos movemos: devemos decifrar a aparência, e não o que está por trás dela.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.