Uma breve história do feijão

O cenário é uma isolada ilha do Oceano Pacífico. Nosso personagem principal é um soldado que resiste, solitariamente, na manutenção das terras conquistadas por seus camaradas. As batalhas que resultaram nas conquistas foram travadas nos primeiros anos da década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Já se passaram alguns anos do final do conflito e o valente recruta mantém seus deveres caprichosamente em dia sem saber que seu país saiu vitorioso nesses embates. Descoberto após alguns anos, vira manchete de jornais e é saudado como herói nos Estados Unidos. Como sobreviveu tanto tempo sozinho? A pilha de latas de feijão acumuladas ao lado de seu acampamento revelam sua fórmula…

A cena acima faz parte de um dos últimos filmes da célebre dupla formada por Oliver Hardy e Stan Laurel, o Gordo e o Magro. Através dela percebemos como até mesmo o glamour da sétima arte produzida em Hollywood não pôde deixar de valorizar e enaltecer um dos alimentos mais populares do mundo, o feijão. É importante destacar que ao chamarmos o feijão de alimento popular reconhecemos que esse membro da família das leguminosas é uma iguaria consumida em larga escala em todos os continentes e que, ao mesmo tempo, por seu preço acessível, é um alimento presente a mesa dos mais humildes mortais tanto quanto dos mais ricos cidadãos.

Seu forte apelo popular fez com que o feijão se tornasse protagonista em diversos segmentos culturais. Quem não se lembra da obra de Orígenes Lessa, O feijão e o Sonho; outra forte reminiscência artística foi a novela Feijão Maravilha; a cantora Simone cantava no final dos anos 1970 uma música cujos versos iniciais eram “pode ir preparando aquele feijão preto eu to voltando”; há ainda uma dança popular chamada Coco cujos passos foram nomeados como feijão preto, feijão mulatinho e feijão miudinho…

Há diversas variedades desse alimento conhecidas mundialmente, entre as quais as mais difundidas são: feijão preto, feijão mulatinho (também chamado de roxinho ou rosinha), feijão carioca, feijão bico de ouro, feijão jalo, feijão branco, feijão fradinho, feijão borlotti (ou romano), feijão cannellini, feijão-de-lima, feijão mungo, feijão da china, feijão encarnado (ou mexicano), feijão manteiga, feijão azuki, feijão verde e o feijão da praia.

Sua história tem registros tão longínquos quanto à Grécia Antiga, destacadas no artigo Cidades e Campos Gregos, de autoria de Marie-Claire Amouretti, onde há algumas menções de autores clássicos em que o feijão aparece ao lado de tradições da península balcânica como vinhos, queijos, figos e os grãos de trigo.

Não era, é claro, um alimento de regular utilização entre os helenos. Tanto é que não consta entre as heranças gastronômicas legadas pelos conterrâneos de Sócrates, Platão e Aristóteles aos romanos. Também estava presente entre os produtos vendidos nos mercados de Roma, a Cidade Eterna. Era, no entanto, apenas uma leguminosa a mais e não uma variedade verdadeiramente incorporada aos cardápios de então.

Novas histórias em que o feijão se torna protagonista voltam a aparecer somente na Idade Média. Nessa época essa leguminosa e também a fava, o grão de bico, o cizirão e a ervilha juntam-se ao centeio, a cevada, a aveia, ao sorgo, a espelta e ao milhete como concorrentes do trigo, o grande campeão de plantio durante o Império Romano. São alimentos considerados inferiores ao cereal de preferência dos romanos, no entanto exigiam menos cuidados em seu plantio e eram mais rentáveis em termos de produtividade.

O plantio de feijão entre os europeus medievais se verifica com maior incidência especialmente na baixa Idade Média. Há plantações espalhadas por toda a Europa, com maior destaque, no entanto, para as produções alemãs e inglesas. Sabe-se também que essa leguminosa era plantada tanto em campos abertos quanto em hortas. Essa particularidade quanto ao local de produção esclarece que o destino das safras variava, no primeiro caso destinando-se aos nascentes mercados das cidades medievais e, no segundo, das hortas, a subsistência dos camponeses.

No Império Bizantino a importância do feijão e de alguns outros alimentos, assim como as preocupações quanto aos direitos sobre a terra e a produção fizeram com que surgissem leis severas e punições duras a todos aqueles que ousassem invadir propriedades e roubar alimentos. Previam-se chicotadas, indenizações em valores de mercado para os produtos roubados (ou ainda pagando-se o dobro do prejuízo causado) e, se isso fosse impetrado por funcionários do dono das terras, esse trabalhador perderia o direito ao recebimento de seu salário.

A preocupação com as colheitas e também com o abastecimento de seus mercados levava os bizantinos a definir os períodos de plantio regular de seus alimentos, entre os quais se destaca a presença marcante do feijão, cuja semeadura deveria acontecer no mês de fevereiro, juntamente com cebolas, cenouras e alguns tipos de hortaliças. Essa determinação também esclarece que para os cristãos do Oriente a agricultura planejada era a garantia de estoques alimentares nos períodos de escassez. Nesse sentido o feijão, alimento que pode ser armazenado por um bom período de tempo, ganhava vulto na dieta bizantina.

Também os árabes fizeram uso regular do feijão como alimento a partir das definições de suas bases culturais na Idade Média. Não eram os feijões que seriam encontrados na América, mas sim variedades africanas e orientais, na maior parte dos casos, consumidas ainda verdes. São suplantadas nas dietas mulçumanas pelas lentilhas e favas e competem com as ervilhas enquanto alimento secundário. Foram formas encontradas pelos povos da antiga Ásia Menor para combater a escassez de cereais em seus períodos de entressafra. Seduzidos pelo sabor do feijão desde seus primórdios enquanto civilização, o mundo árabe sucumbe, anos depois, ao poder das variedades dessa iguaria importados da América também os incorporando ao seu cardápio. São tradições que se renovam.

Os judeus do medievo igualmente se apropriam do feijão verde e o incorporam a sua dieta. Fazem uso desse alimento para a produção de caldos, sopas e pães (utilizando-o enquanto legume seco). O feijão também é secundário na dieta semita (como já havíamos observado em sua trajetória histórica anterior, desde os gregos até os mulçumanos), tendo sido suplantado pelo grão de bico nas receitas locais. O importante é perceber que, apesar de estar sempre legado a um espaço discreto nos cardápios das civilizações anteriores à modernidade, o feijão existe e está presente nesse enredo.

É, porém, a chegada dos tempos modernos que difunde amplamente o consumo do feijão pelo mundo afora. Seu papel de coadjuvante na dieta mundial é superado pela rápida transposição das fronteiras físicas que separavam a América e suas novas variedades de feijão do restante do mundo. O “feijão antigo e medieval”, também conhecido como faséolo, conforme nos ensina Jean-Louis Flandrin, vai sendo superado discreta e rapidamente pelos seus parentes de além-mar, surgidos no Novo Continente. Atualmente é até difícil imaginar que os africanos os conheceram há tão pouco tempo e que os ibéricos só os adicionaram as receitas de suas terras depois do século XVI.

É nesse momento específico da história mundial que o Brasil entra em cena e começa a mostrar a sua predileção pelo feijão. Identificado pelos indígenas locais como comandá, o feijão está entre os registros e anotações feitos pelos primeiros exploradores europeus que anotaram as peculiaridades brasileiras e as levaram para o outro lado do Atlântico. Apesar de conhecido pelos portugueses desde o século XIII, conforme nos conta Câmara Cascudo em sua célebre obra História da Alimentação no Brasil, não eram as variedades americanas as utilizadas em terras lusitanas, mas espécies trazidas da África.

Para os portugueses o feijão era (e continua sendo) o parceiro ideal para seus caldos, sopas, dobradinhas e até mesmo pastéis. A incorporação de variedades provenientes das colônias americanas realça e valoriza pratos que já eram tradicionais desde a Idade Média entre a população lusa. No Brasil, o feijão divide as atenções inicialmente com a mandioca e o milho. Somente o advento das expedições de desbravamento do território nacional rumo ao interior, em busca de bugres, ouro e diamantes é que fará o feijão brilhar na gastronomia brasileira.

As facilidades relativas ao seu transporte em farnéis; a possibilidade de rápido plantio de suas variedades ao longo das rotas que levavam as “Geraes”, Goiás, Mato Grosso e outras localidades; a durabilidade do produto; a facilidade de cozimento e o seu sabor delicioso quando adicionado à farofa faziam do feijão o melhor companheiro para os bandeirantes paulistas e demais viajantes que se aventuraram em direção ao centro do nosso país-continente.

Dessas fabulosas viagens surgiu a variação da feijoada portuguesa, feita originalmente com feijões brancos. Na ausência do ingrediente original e diante da oferta do seu irmão negro, as escravas-cozinheiras de sinhás portuguesas que se estabeleciam nas rotas e cidades surgidas, assim como nas litorâneas capitais brasileiras (Salvador e Rio de Janeiro) e demais cidades de vulto e relevância, adicionavam aos pedaços do porco (orelha, toicinho, patas, rabos, lombos) a leguminosa herdada dos nativos e repassada aos africanos, dando origem ao prato típico brasileiro mais conhecido internacionalmente, a feijoada.

A conjunção arroz e feijão, tão cara aos brasileiros de todos os estados é, por sua vez, devida aos maranhenses e ao fomento da produção de arroz em suas terras para a exportação ainda no século XIX. Precursores da produção desse cereal oriundo da Ásia, os maranhenses foram logo apelidados de papa-arroz. Mal sabiam eles que estavam lançando as bases da mistura mais trivial da história da alimentação de nosso país.

Atualmente o Brasil continua figurando entre os maiores produtores e consumidores mundiais de feijão. O mundo contemporâneo viu, entretanto, a rápida disseminação desse produto entre os países do hemisfério sul, transformados em produtores de matérias-primas para os ricos países europeus ou ainda para os Estados Unidos. Atualmente, além dos brasileiros, também os africanos destacam-se enquanto países onde as áreas destinadas ao plantio do Phaseolus Vulgaris (nome científico do feijão) são grandes e determinantes para a economia.

A despeito de suas claras e evidentes origens populares, o feijão ganhou o respeito e a credibilidade que possuí em virtude de suas possibilidades gastronômicas e qualidades nutricionais. Rico em ferro, vitamina C, magnésio, vitamina A, potássio e ácido fólico, o feijão pode ser cozido com ingredientes que valorizam seu sabor e caldos de forma a magnetizar qualquer pessoa, dos mais ricos magnatas aos mais humildes trabalhadores. É por isso que, invariavelmente, os visitantes que chegam ao Brasil se encantam com a feijoada, os virados à base de feijão, o caldinho de feijão, as sopas e, é claro, pela clássica e saborosa combinação entre o arroz e o feijão…

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João Luís de Almeida Machado