Arena Livre By Luiz Carlos de Almeida Garrocho / Share 0 Tweet Muito se pergunta sobre a função-personagem e a função-fábula no teatro pós-dramático, teatro performativo etc. Quando penso as forças de um teatro físico, que carrega as potências performativas e pós-dramáticas, configuro um programa de desfiguração/despersonalização. O que vem a ser isso? Faço alguns apontamentos sobre o assunto. Algumas pessoas sempre discutem isso comigo e, invariavelmente, nas oficinas de treinamento em e como criação, assim como nos processos criativos, sei que enveredo por um caminho outro de criação cênico-corpórea. Para o público, uma experiência estética em que a fábula é construída na sua cabeça. Que não se espere símbolos a serem decifrados, apenas afecções. Ninguém, por exemplo, espera traduzir uma composição puramente musical. Ela não ilustra nada. O mesmo ocorre com os teatros físicos, na esteira dos teatros pós-dramáticos e performativos: trabalham com sensações e sentidos, não com significados. Estes são inevitáveis, mas não são procurados. Para quem se arrisca nesse tipo de criação, outras angústias o acometem. Isso é comum porque as escolas de teatro conhecem e difundem os teatros dramáticos. Mais do que isso: estabelecem um vínculo interno (e eterno) entre teatro e drama. Teatro ou dança? Teatro e dança? O que vem a ser um teatro físico? Para quem tem dúvidas sobre o tema, Lúcia Romano, no seu belo livro, Teatro do corpo manifesto: teatro físico, apresenta um execelente histórico e conceitos. Faço minhas anotações (não classificatórias, procurando antes cartografar um desejo): 1. Pensar negativamente é pensar o que falta ao outro. Ou o que ele não é. Isso comumente ajuda, mas torna o pensamento preso a um referente. Temos que avançar e dizer a que viemos: qual o programa de um teatro físico? Não basta dizer que é um teatro sem personagens e sem drama. 2. E é sempre bom insistir: tal programa não nos salva nem nos redime do fracasso. Além disso, não é um teatro melhor que os outros. O que ele busca é responder às tormentas que o acometem. Mais nada do que isso. Se está na moda, isso preocupa e não. 3. Compor com as forças da desfiguração. Deleuze, em Francis Bacon – lógica da sensação, discorre sobre tais potências que nos fazem passar da Figuração para a desfiguração: “quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona”. Assim, Bacon não quer pintar a figura do horror, mas sim produzir a figuração do grito. O grito como a captação de uma força invisível, diz Deleuze sobre Bacon. 4. Fazer a distinção entre figura de figuração. As Figuras são forças visíveis. Deleuze diz que a função das Figuras é a de tornar visíveis as forças invisíveis. São aparições. Mas as Figuras são, comumente, presas à figuração, narração, ilustração. Deleuze mostra que “o figurativo (a representação) implica, com efeito, a relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar…” E a narrativa funciona como o correlato da ilustração: “uma história que se insinua ou tende a se insinur para animar o conjunto ilustrado”. 5. Desfiguraçâo: programa em que “o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível”. 6. Há seres. Há figuras. Insisto muito nisso. Daí a diferença do teatro físico com a dança conceitual (contemporânea) e mesmo a dança expressiva (moderna). Há seres e relações. No sentido de forças, violências, atravessamentos. De um lado, são ações poéticas e de outro relações a-significantes (que modificam expectativas e significados). Mas são relações, sempre. 7. O teatro clássico moderno constrói fábulas sobre personas em conflito. Num teatro físico trata-se de forças que atuam sobre corpos. Não há eu. Não há núcleos de subjetividade em conflito intersubjetivo ou com o mundo. Há epifânias do performer e da cena. Vide o teatro de Robert Wilson. 8. Para esse plano interessa muito o movimento contemporâneo da dança, principalmente quando ela ultrapassa a estética do movimento extensivo para adentrar nas tormentas do movimento intensivo (Artaud). 9. Matteo Bonfitto, noutra articulação diversa mas muito apropriada para este programa, em O Ator compositor, fala de três actantes: a) máscara; b) texto e c) estado. O actante máscara remete à persona (psicológica) e ao tipo. O actante texto é uma característica de Heinner Müller: como se poderia, a partir de Medeia Material falar de um núcleo subjetivo em desenvolvimento? Há seres textuais, digamos assim. E o terceiro, o actante estado, diz justamente das pulsões corporais. 10.O universo dos seres é aquele que transita entre a fábula e sua dissipação, instaurando o que Bonfitto chama de actante estado, produzindo Figura com potências desfigurativas. Ou, ainda, que conduz à espacialização desses seres. Você pode identificar, isto mesmo, classificar numa identidade, um determinado ser: uma caracterização cênica. No entanto, esta última logo varia e subtrai tudo o que poderia trazer uma história com lógica causal, organizada do passado ao futuro e vice-versa (drama). 11. Fazer o território da fábula fugir. Referências: Imagem de Esquina dos Aflitos – cena curta apresentada no Festival Internacional de Teatro de BH e no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto, em 2002. Direção: Luiz Carlos Garrocho. Roteiro de Luiz Carlos Garrocho e Ricardo Alves Júnior. Elenco: Clarice Peluso (foto), Juliana Barreto, Cristiano Moreira, Paulo Azevedo. Figurino de Maria Inês Starling Mol. Blog de Luiz Carlos Garrocho