O que há por trás do carnaval de Salvador


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O que podemos esperar de um espaço de consumo e interação, imbuídos em aproveitar o prazer de um tempo limitado e achatado pela "vida real"? Nada, se entendermos que o carnaval não pode ser mais um espaço de conforto de tradições e manifestações culturais acerca de imaginar e pensar um novo mundo. Caso contrário, entendamos o mesmo como um emaranhado cultural de possibilidades, sendo a principal de fazer e reproduzir a Política republicana enquanto a arte de construir um repertório não-econômico.

Ao pensar em escrever algo, projetei problematizar o papel de Rudolf Stenzel, personagem tipo ideal de líder de movimento estudantil da rede Globo, escalado no folhetim das nove. Este artigo fica para outra hora, quem sabe na quarta-feira de cinzas. A discussão em clima de carnaval que suscita sopros intelectuais neste momento é o propalado carnaval. Viver em Salvador dá agonia. A cidade é desocupada propositadamente após o carnaval pelos artistas que conseguiram emplacar alguma música de “sucesso” nas rádios baianas. O axé – ritmo de/para brancos (os negros até ouvem, mas saem em blocos baratíssimos) – percorre o país com sua “baianidade” apresentando uma música que geralmente remete o indivíduo a encarar a vida como um piquenique, o sol, as mulheres, os fortões. No verão, as aves ávidas de lucro fazem o caminho inverso.

O carnaval moderno, representado na Bahia pelo nascimento da fobica nasceu de uma expressão popular, sem um conteúdo político no seu bojo. Apesar de sabermos que o carnaval nunca buscou ter uma essência meramente politicista, cada vez mais assistimos as manifestações culturais darem vez às intempéries da “pós-modernidade”. A primeira delas é o avanço voraz e intenso do capitalismo levando tudo a crer que a vida é uma simplória compilação de sucesso quando se tem gestão racional a visar lucros. A segunda faceta mágica é a artificialidade da vida social que perde uma finalidade mítica quando a religião se distancia da maioria da população e o sentido do bem comum com o descolamento das ações, crenças e valores de atitudes. Este nó na vida social gera impasses ocasionados pelo que podemos chamar de falência dos mapas cognitivos, abordado por Norbert Lechner sobre o sentido do político nestes tempos.

Podemos verificar tal aspecto também no que Stuart Hall denominou de contradições das identidades culturais, difusas e abertas de possibilidades, assim como os oceanos que vieram a ampliar o espectro civilizatório na visão do ocidente. Assim sendo, é tal sentido que queremos retomar aqui: o carnaval sendo um espaço de aprofundamento da vida social distante e avessa à política.

Transformações à parte, o carnaval de Salvador se transformou num terreno de hipermercantilização, as esferas espontâneas de manifestação de perspectivas e visões de mundo se transformam no século XXI num espaço de consumo, seja de sexo, drogas, beleza, música, etc. Tudo é consumo. As eras atuais deram um papel à política de um mero voyeur da vida social. Reduzindo seu espaço, os atores políticos contestatórios não dão mais as caras no carnaval como outrora. Para os “contracultura” carnaval é momento de paz e descanso, não devendo ser palco de irreverência e protesto. Este cenário remonta muito bem as perspectivas do cenário do pós-muro de Berlim que produz frustrações de busca de mundo melhor, na verdade, a ênfase agora é no possível, sinal óbvio e ululante de que o neoliberalismo ganha força e o carnaval fica cheio de coisas vazias.

É frustrante para muitos baianos ver o carnaval como um notório vazio de sentido que não seja o de consumir, extravasar barreiras, detonar cartões de crédito. Este sentido simbólico é interessante quando partimos da premissa de que o “extravasar” é um contraprocesso ao racional e organizacional imposto todos os dias nas diversas esferas sociais, é o que sensorialmente classificamos de rotina, algo que o capitalismo implanta nas mentes e corações. Um fim em si, no ato de consumir. A partir de tal prognóstico breve e liminar, é que o carnaval vende uma alegria que é momentânea e não vai lograr êxito na quarta-feira de cinzas. Ao darmos um cheque em branco ao capitalismo invadir nossas “casas” – cognoscência e cultura nossa de cada dia – não sabemos onde podemos encontrar um porvir de possibilidades concretas de uma vida melhor.

Aliás, sabemos: é na política, enquanto arte de viver em sociedade de partilhar uma história em comum, um repertório de aspectos não-econômicos, que depositamos este porvir que está sendo solapado pela vida privada. Não é demais falarmos que as sobras da vida social ficam com a política que suspira contingências, momentos e possibilidades pequenas perante o arcabouço estrutural tomado pelo mercado. É assim no carnaval, o consumo de tempo (in) feliz é acompanhado de um vazio de sentido extemporâneo, assim como o conceito de fama que na Roma era significado de heróis que contribuíram para a sociedade, no que tange a manutenção de repertórios e missões de vida. O republicanismo aspira este mote, ou seja, retomar um elo perdido. O que buscamos trazer á baila neste momento é pensarmos como a fraqueza nos toma na alma. O que sobrou de alternativas ao baile não são contestações públicas, festas até ao amanhecer, mas grunhidos de resignação. È fato que alternativas ainda estão em disputa, podemos citar a Mudança do Garcia na segunda-feira de carnaval, o palco do rock, caminhadas, artistas que saem sem corda, dentre outros.

Em suma, a pós-esquerda contestatória anda balançando assim como toda a nave neoliberal, assumindo novos caminhos institucionais, tortuosos de antemão. Saúdo com estas palavras e reflexões, todavia, todos os atores sociais e políticos que buscam pensar e atuar numa coletividade, num projeto político de maior felicidade e de menor opressão, até durante o carnaval, apesar deste andar mais privado do que público. O porvir, são identidades culturais confusas. Por exemplo: já pensou em um comunista “chicleteiro”? Num socialista freqüentador de camarotes Vips? Acreditem, aqui e no mundo todo tais contradições são possíveis. Imaginar um mundo melhor na e pela Política é um alento para um projeto ocidental de sociedade ainda viável. E o que esperar da geração Coca-cola? Não sabemos de forma ontológica. No mais, nos vemos na quarta-feira de cinzas quando tudo voltará ao normal, a ser rotina, de onde nunca deveria ter saído?

Referências Bibliográficas:

HALL, Stuart. As identidades culturais na pós-modernidade. Editora LP&M, São Paulo, 2005.

LECHNER, Norbert. Os novos perfis da política: um esboço. Lua Nova, 2004, no.62, p.5-20.

Cláudio André de Souza é estudante de Ciências Sociais, bacharelando em Ciência Política, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Cláudio André de Souza