Monalisa vs. Sistina

Uma tela e o teto de uma capela; dois gênios renascentistas; quatro anos de trabalho; experimentação vs. realização; razão vs. sentimento; Monalisa vs. Capela Sistina.

De um lado, 77 x 53 cm; pinceladas de tal modo finas e numerosas que imperceptíveis; uma senhora em repouso retratada; cerca de quatro anos de trabalho.
Do outro lado, centenas de metros quadrados espalhados pelo teto (e altar mais tarde altar) de uma capela top do clero representando personagens bíblicas através de nus hercúleos, de movimento dinâmico; força imaginativa direcionada para a narração alegórica; cerca de quatro anos de trabalho.

A pequena Mona Lisa e a imensa pintura na Capela Sistina

Uma delicada tela que acumula desconhecidas camadas sobrepostas; um trabalho monumental habitando o teto que interrompendo o céu nos faz olhar para ele como se um fosse o outro.

A pintura da Capela se não fosse pintura seria escultura, pois se relaciona presencial e espacialmente com quem as contempla: os super-humanos parecem ocupar realmente o teto e o altar. Intimidam os olhos das cabeças por sobre os pescoços virados para cima. Um efeito especial para passar uma franca mensagem de furor divino.

Quem a vê está dentro dela.

A pintura retratando a Gioconda se não fosse pintura seria um extenso estudo, a capa de um livro, de um diário, ou mais muitas outras coisas. Uma janela para uma atmosfera misteriosa.

Quem a vê quer entrar nela.

Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti se associavam na concepção de gênio entre seus contemporâneos. Representam (e não representavam, porque representar nesta conotação não morre com a vida) o ideal de homem renascentista, o homem completo. Michelangelo: plenamente pintor, escultor, arquiteto, poeta. Leonardo: plenamente pintor etc. (etc. = um pouco de matemático, engenheiro, arquiteto, escritor, músico, inventor, cozinheiro, cientista tático-militar, escultor, físico, botânico e mais um pouco de etc.).

A inconfundível Gioconda

Há uma tendência em se polarizar pares de grandes personalidades artísticas contemporâneas entre si. Ignora-se o que as aproxima (porque talvez já esteja implícito em suas respectivas relevâncias) e se as destaca a partir das propriedades mais acentuadas, como se uma num eliminasse a mesma no outro, quase um esquema tira bom e tira ruim. Paul é harmonia; John, poesia. Mozart é inspiração; Beethoven, trabalho. Os Beatles eram os bons moços; Stones, bad boys. Leonardo era o extrovertido-festeiro-cerveja; Leandro, o introspectivo-sedutor-café. Chico e Caetano; Pelé e Garrincha; Vinícius e João Cabral; Picasso e Duchamp (embora Picasso possa aí tomar a face de outro lado da moeda em relação a Einstein, se pensarmos em desconstrução moderna ou mesmo modernidade (mas aí temos Corbusier como forte concorrente e/ ou pólo), ou Matisse, no quesito pintura de vanguarda, ou Braque, no Cubismo). Enfim, Batman e Superman.

Valer-me-ei justamente deste método para pensar nestes dois ilustríssimos adversários: Leonardo e Michelangelo: o pensamento e a realização.

Pensamento e ação

Durante sua feitura, a Santa Ceia passava longos períodos abandonada por Leonardo. Mas era abandonada de trabalho, porque Leonardo visitava-lhe, observava, fazia anotações e, segundo biógrafos, conversava com as personagens desenhadas. Então nem era de trabalho que era abandonada, era de realização, ou nem de realização, mas de execução. Se não movia um pincel, movia milhões de neurônios. Porque pensando Leonardo trabalhava. Os afrescos de Michelangelo (e se pensarmos que o Martírio de São Pedro e a obra em escultura vieram do mesmo lugar e numa vida somente, percebe-se que não perdeu muito (ou nenhum) tempo sem produzir) até pela característica intrínseca da técnica (embora tivesse camadas de gesso, a Santa Ceia era pintada em óleo e têmpera), tinham de ser feitos rapidamente a fim de acompanharem a secagem do gesso. A partir de cartões já logicamente por ele elaborados, ele pintava as figuras assim pré-concebidas o mais rapidamente possível. E, reportando-me novamente à escultura, para a qual ele mesmo sempre se reportava, era a concretização de algo que já estava pronto numa esfera (que pode ser o intelecto ou mais romanticamente a inspiração, como ele mesmo entendia): Michelangelo dizia retirar do bloco de mármore uma escultura já sabida, já existente, cumprindo a ele apenas remover os excessos que a cercavam. Ele libertava formas.

Para ele, pintar era um ato de realização. Para Leonardo, era uma plataforma de teste, tanto que o cunho experimental estragou-lhe algumas obras e sofisticou a mais célebre delas (a Mona, para quem não pegou ainda).

Léo e Mike se associam na posição-símbolo de gênio até hoje. Quando se fala em arte, é difícil saber qual a primeira imagem a vir à cabeça, se a dos dedos indicadores de Deus e Adão quase se encostando ou se é a rechonchuda senhora sem sobrancelhas (a Mona, para quem não pegou ainda). Ou quando se fala em humano, o Homem Vitruviano ou o David. Em religião católica, a Santa Ceia ou a Pietá. Em gênio, a cara de um ou de outro.

Gênios são, um e outro. Ambos, indubitavelmente. E o foram por caminhos opostos: o que levou Michelangelo ao status que ocupa até hoje foi sua persistência em terminar. Sua obstinação.
O que levou Leonardo ao status que ocupa até hoje foi sua instabilidade, que lhe permitiu atingir tantos campos ao mesmo tempo deixando em cada um deles apenas um sopro ainda entusiasmado de novidade (até suas pinturas não deixam de ser experimentos sobrepostos).

Um duelo entre Monalisa e os senhores e senhoras atléticos da Capela Sistina não seria uma covardia: se eles têm força física, são gigantescos (o Adão teria quase três metros se se levantasse daquela colina, sem falar nas sibilas e profetas) e têm no time ninguém (ou melhor, Ninguém) menos que o criador do universo, a Gioconda revela em seu sorriso esfumaçado alguma ironia, alguma arrogância, alguma prepotência de quem tem um poder misterioso, de quem nem parece humano, de quem mesmo tendo um cenário medieval e místico como as coisas medievais eram às costas, olha para frente, para o futuro, e olha para onde você for.

E além: é um duelo entre a força e a delicadeza, entre o detalhe e a grandiosidade, entre a exteriorização do mundo interior e a apreensão do mundo exterior; entre ciência e religião, porque os dois barbudos encarnam muitos pontos opostos: desde a maneira como trabalhavam até como entendiam a natureza (um queria a superar, o outro a venerava como observador). Assim como não deixa de ser (simbolicamente) uma oposição de sentimento e raciocínio. Pela sua natureza, a Monalisa parece mais íntima: você, caso tivesse muitíssimos milhões de dólares ou quiçá um pouquinho mais que isso e convencesse o pessoal a vendê-la, poderia pô-la no seu quarto. Mas se falarmos em intimidade, teremos uma inversão, diametralmente oposta às dimensões físicas das obras deixadas pelos dois. Leonardo quase não falava de si (tanto que Freud teve de usar sua técnica de garimpar traumas e decodificar personalidades a partir da aplicação de metáforas geradas inconscientemente baseando-se num episódio isolado da infância de Leonardo descrito pelo próprio). Usando do sentido para ele soberano do olhar, sua compreensão do mundo era a de um observador neutro, movido pela razão. Já Miguel Ângelo (como o chamam os portugueses) explodia seu mundo íntimo (sua paixão religiosa, seus anseios eróticos e a contradição entre eles) na sua criação: esta tempestade emotiva materializa-se na sua obra.

É como se os muitos metros quadrados dos afrescos tivessem sido expandidos do íntimo de Michelangelo, ao passo que o nem um metro quadrado da Monalisa concentrasse em si todo o mundo observado à sua volta. Em suma, ambos se equivalem em intensidade. Talvez, se fosse possível medir isso, o número de pinceladas nas duas obras seja muito semelhante, dado que diagnosticaria tal densidade similar entre elas.

Cadernos do da Vinci

Michel de Montaigne chamou Ensaios (com a conotação de tentativa) ao volume de textos que produziu sem um objetivo pré-estabelecido. Michel (o de Montaigne, não o Ângelo de Florença de quem venho falando até aqui) podia falar de tudo sem ter responsabilidade de nada. E Michel se avizinha a nós com o passar do tempo: blog, fotolog, orkut, flickr, twitter, todas as armas da internet 2.0 não têm pauta definida ou mesmo qualquer outro filtro. A mídia é nossa e a conseqüência disso é liberdade, o que se aproxima da idéia de ensaio, tentativa (o que ele fez foi meio que um blog em papel que ficava somente com ele – o que deixa de ser blog e vira diário, já que blog é que é um diário virtual, pois este é anterior àquele e anula esta minha desnecessária comparação, ao passo que a permite justificando sua tentativa sob o epíteto de “ensaio” de qual falamos agora).

E é, ainda em Montaigne, mas já a esta altura ressonando em tudo, um auto-retrato, como dizem, o ato destas anotações.

Os cadernos do da Vinci são um grande ensaio: um diário de bordo de uma viagem pela sua própria criatividade e por suas descobertas (o que talvez dê no mesmo, numa camada mais profunda). O registro primeiro do que observava, do que concluía, do que supunha. Assim da Vinci era (mesmo sem falar de si) o centro de sua obra, porque ela, inacabada, servia de prova de sua genialidade, de sua capacidade extraordinária e múltipla.

Apesar de ser mais novo, Michelangelo é mais antigo. Talvez devido a esta característica cíclica dos tempos, que se curva como uma parábola (3 2 1 0 1 2 3). Pois Leonardo aplicava a arte na matemática e esta naquela; misturava os métodos de ciência e arte entre uma e outra. O sfumato vai além de suas pinceladas e reflete uma relação difusa entre suas atividades, convergindo-as e convergindo-se ele mesmo. Antecipa de certa forma o aspecto múltiplo da arte, ou da matéria subordinada à idéia, bem como consagra seus cadernos como preceitos do conceito de trabalho aberto, em progresso.

Por outro lado, se pensarmos na evolução das atividades, a primeira etapa é observar, a etapa seguinte é criar originalmente. E foi assim que o cubismo foi do analítico para o sintético. E cá teríamos Michelangelo mais recente.

Esforço ou espontaneidade?

Então quem é mais recente? O modernismo (esforçar-se para o objetivo final) e o pós-modernismo (fazer o que tem vontade na hora) poderiam sugerir uma solução. Mas vale lembrar que o pós-modernismo é rarefeito, precisa do modernismo para existir. Ambos convivem, porque é o que percebemos na prática (o esforço ainda tem seu valor).
São duas opções que se assemelham ao barroco literário (ou seja, uma dúvida que se põe acima das duas possibilidades): a vida é curta: queimá-la em pecados ou preservar-se até o fim? O momento ou o futuro? Optar pelo esforço ou pela espontaneidade?

A magnificente capela SistinaE aí que retornamos às idéias pós-modernas que teorizam este presente gigante: se falávamos de cíclico, de parábola, o pós-modernismo (o nosso tempo) é uma curva quadrada, de esquina de bairro, ou é uma espiral, ou uma caótica movimentação de uma linha que se seguia, a tal parábola, o tal ritmo cíclico. Faz dessa linha uma rubrica que assina e autentica a desistência dessa evolução e progresso. E até mesmo dessa organização. Assina embaixo assumindo o mundo como ele é.

E o mundo como ele é não é nada esquemático – o esquema em si é mais um dos tantos fragmentos que simbolizam algo sem o ser efetivamente. Você é sua imagem, é seu nome, é seu pensamento, é a idéia que os outros têm de você. Essa coisa toda que a filosofia já teve o trabalho de explorar e (praticamente) esgotar. Então tudo se aproxima muito. E Leonardo (pensamento, projeto) e Michelangelo (ação) se aproximam. Se formos pensar, os pensadores o são porque registraram seu pensamento, porque escreveram o que pensaram (Sócrates certamente seria uma célebre exceção, mas se soube o que ele pensou porque ele falou). O pensamento em si continua protegido ou excluído, como preferirem. No fim é sempre de uma ação, de uma realização que se fala. E mesmo uma obra de carga sentimental passa pelo crivo do cérebro em sua concepção e por fim será também fragmentária mesmo que pretensiosamente completa.

Temos por obrigação propor a sutileza e ao mesmo tempo (porque “ao mesmo tempo” é o trunfo de hoje em dia ao mesmo tempo em que é o nosso calcanhar de Aquiles) o exagero, a fim de perceber este sfumato e saber que uma coisa não é tão diferente da outra; a fim de amplificar as diferenças para mapeá-las e com isso localizar-se.

Até por ser sempre questão de ponto de vista: Michelangelo-ação e Leonardo-pensamento, podem se tornar Leonardo-realização e Michelangelo-pensamento: este realizava seu pensamento, aquele pensava sua realização. Um confiava no seu pensamento e outro aprendia com sua realização.
A monalisa sempre nos olha e nós a olhamos sempre, e sempre olhamos para cima para ver o teto da Sistina fazendo as vezes de céu. Ao olhar, pensamos. Olhando, realizamos.

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João Grando