Biomentiras

Ironia do destino é ouvir na Alemanha dentro do carro na auto estrada a 120 km por hora um programa no rádio sobre a política de biocombustíveis do Brasil e desmascarando o que é entendido como bio, vida, em terras Tupiniquins.

 

 

 

 

 

 

Ironia do destino é ouvir na Alemanha a 120 km por hora na auto estrada a caminho de volta para casa depois de um dia trabalho, um programa no rádio sobre a política de biocombustíveis do Brasil desmascarando o que é entendido como bio, vida, em terras Tupiniquins.

“Que bio que nada, bio é vida e em plantação de cana-de-acúcar para 300 mil trabalhadores é morte lenta.” conta um estrevistado na reportagem. Ao contrário da esperança dos brasileiros de estarem “contribuindo para diminuir o efeito estufa” como disse o governador José Serra, o Brasil aqui é visto como destruidor de floresta para a plantação de soja e cana*.

Numa reportagem titulada em alemão “Die bittersüße Geschichte des Zucherrohrs”, A doce amarga história da cana-de-açúcar, inicia com depoimentos eufóricos do governador José Serra gravados ao vivo no auditório do World Trade Center em São Paudo: “-O etanol é energia renovável… proteje o meio ambiente, reduzindo a emissão de gás carbônico. ”

O repórter ataca: “- Todos estavam lá: fabricantes, lobistas, interressados de diversos continentes, mas nenhum crítico.”

 

Que a produção de açúcar deixou o nordeste a quase 20 anos nós sabemos, sabemos também que o estado de São Paulo que atualmente é o maior produtor de cana. O sudeste reune as condições perfeitas: o combustível produzido está próximo dos consumidores, Rio, São Paulo, Minas Gerais, e das vias de exportação. Ah, não esqueçamos da mão-de-obra, claro, claro a mão-de-obra abundante e barata.

 

 

Engato a marcha automática no meu Mercedes CDI 170 e dou seta para entrar na auto estrada A4, Aachen em direção a Colônia. Meu compudador de bordo avisa: Vire à esquerda e siga 26 quilômetros.

 

Entra a música de um berimbau e o narrador descreve Salvador, Bahia, onde tudo começou, o Pelourinho importante pondo do mercado de escravo os barões da cana que levavam a vida de rei e os escravos , unidos por correntes transportados em porões fétidos viajando entre os continentes trocados por cobre, rum e pérolas. “- A África fornece o combustível para a indústria do açúcar, o petróleo dos tempos coloniais. Milhões deles foram arrastados como “matérias vivas”.

 

 

Eu acelerando a 100 km…

 

Agora o repórter vai até o recôncavo baiando, a fértil, tropical quente região do sul da Bahia, o paraíso, onde a Mata Atlântica foi derrubada para a dar lugar a cana-de-açúcar.

Citação: “O proprietário de um escravo precisa de 2 anos de trabalho para abater os custos de manutenção, após esse tempo é puro lucro. Após 5 anos é preciso ser substituído por um novo escravo”.

O ciclo da cana-de-açúcar passou e a monocultura deixou para traz só destruição. A biodiversade da Mata Atlântica foi sacrificada e aos ouvidos dos ouvintes alemães, dói. Aos ouvidos de qualquer um dói.

 

Olho no retrovisor para as três largas pistas…

 

O Nordeste era o maior produtor de açúcar até que então no século XX a cana desce para as terras férteis de São Paulo. O Brasil se torna pioneiro no mundo na produção de etanol para movimentar carro.

Aí entra o depoimento do Presidente da SOPRAL Cícero Gontijo na década de 80: “- A produção de álcool proporcionou 850.000 postos de trabalho. Claro, este trabalho não é bem remunerado. Mas é um trabalho que para aqueles não qualificados, para aqueles que não foram à escola, é a oportunidade de poderem sobreviver dignamente”.

 

Preparo para fazer a manobra de ultrapassagem, 120 km por hora…

 

Aí entra o repórter narrador: ”- Naqueles tempos no fim da ditatura, trabalhadores da cana protestaram contra as miseráveis condições de trabalho, comida e as imundas habitações.”

Citação: Das Lateinamerika-Institut der Freien Universität Berlin tem inúmeros estudos que comprovam a inrentabilidade do Pró-Álcool. O litro de álccol produzido nos fins dos anos 80 era quatro vezes mais caro que o petróleo importado”.

 

Um grande caminhão tanque esta a minha frente, toneladas de gasolina. Dou seta e…

 

Entra a música de Luiz Gonzaga, Triste Partida, traduzida para o alemão:

… so spricht der Arme aus

dem trockene Nordosten,

voller Angst vor Plagen

und erbärmlichen Hunger…

 

Assim fala o pobre

Do seco Nordeste

Com medo da peste

Da fome feroz

 

Os alemães são estatísticos

 

“Mais de 300.000 homens e mulheres trabalham hoje na doce monocultura do acúcar. 80.000 migrantes viajam todos os anos mais de 1000 quilômetros do nordeste para as plantações no sul. Muitos deles são recebidos pela Pastoral do Migrante.”

 

Fala do padre Garcia: “- Eles chegam aqui em situação de penúria em péssimas condições de higiene e alimentação. Quando são levados para a trabalhar e cortar diariamente 12 toneladas de cana, claro, não conseguem”.

 

Fala de um entrevistado: “- 5 horas sai o ônibus com os trabalhadores sazonais. Trabalham até 3 horas da tarde. A 40 anos um trabalhador colhia por dia 3 e toneladas de cana. Hoje colhem 12. Somente homens e mulheres jovens agüentam esse trabalho. A idade é entre 18 e 32 anos.

continua: “Mas na condição de analfabetos são passados para traz. Dos 600 até 640 reais ganhos (200 euros), sem os descontos da comida e dormida, além de pouparem dinheiro para a família no nordeste não sobra muito para sobreviver e vão morar em favelas.”

 

Narrador: “- O cortador de cana é uma das profissões que mais desgasta o corpo. Debaixo de um sol escaldante ele levanta 10.000 vezes a foice. Perde até 8 litros de água por dia. Somente poucos conseguem trabalhar nessas condições. Dores nas costas, cansaço extremo, desmaios são comuns.”

 

(Aumenta o volume da música e o som do triângulo e zabumba)

 

Narrador: “- No final, fazendo um balanço a produção de bioetanol não é tão reluzente como eles tentam nos fazer acreditar.”

 

Caminhão ultrapassado, pista livre, acelero. Meu velocímetro marca 130…

 

Entra o depoimento de Fernando Henrique Cardoso: “-Nos anos 70, acho, eu não sei quem, um brasileiro: abençoou a poluição do meio ambiente. Então a poluição se chamava desenvolvimento”.

Ainda o Fernando Henrique Cardoso. “- Havia problema com o meio ambiente, mas não era preciso se ater muito, afinal não havia sido nada comprovado. Em países em desenvolvimento como Índia, China e Brasil cursava a idéia de que poluição do meio ambiente era causada pelos países ricos. Porque então nós precisavamos nos preocupar com a poluição?”

 

O depoimento foi além: (Cardoso) “- Então, hoje o progresso significa também responsabilidade. Nós precisamos tomar a natureza em consideração… Precisamos achar o equilíbrio entre desenvolvimento ecológico e crescimento econômico.”

 

O reporter: “- Mas ele não pensou na destruição do meio ambiente quando falou das fábricas de etanol… Pensei que ele falava em desenvolvimento sustentado, pensei que ele falava da plantação de açúcar. Me lembrei das grandes labaredas de fogo que se erguiam sobre os céus no caminho de volta de Guariba até Ribeirao Preto…”

 

Acelerei.

 

Fala de Inês: “ Para produzir um litro de álcool sao necessários 14 litros de água.”

Depoimento de Batista: “A diversidade biológica é mantida através do equilíbrio da natureza. A monocultura significa o desequilíbrio. É válido para o eucalipto a soja e a cana. Em monocultura de eucalipto não sobrevive animal, cobra nem passarinho.”

 

O repórter: “- Mas na conferência do etanol no World Trade Center em São Paulo a compreensão de “renovável”,“diversidade”, “preservação” e energia limpa era sempre reforçada quase como em um ritual”.

 

Fala de Batista: “- Quem pode trazer de volta o cerrado brasileiro? Qual máquina o pode trazer de volta? Pode alguém trazer de volta a floresta amazônica? Se destruírmos nossas fontes de água doce, quem pode trazê-las de volta? Se o povo brasileiro não pode viver dignamente não é igualdade. É preciso terminar com essa história de “bio” e energia limpa e renovável. Quem nos garante?”

 

O que é bom para o Brasil é melhor para o mundo

 

Esse era o mote da campanha da UNICA no Word Trade Center em São Paulo no início da reportagem. Pois não foi à toa que Angela Merkel foi até a América tratar dentre outros temas de projetos de cooperação para produção e compra de etanol do Brasil. A Europa está sedenta. A Alemanha esta sedenta por tudo que possa movimentar motores. Nos últimos meses os preços dos combustíveis fósseis atingiram preços inimagináveis para nós consumidores. Um litro de diesel custa hoje (24/08/2008) 1,51 euro!

Merkel ressaltou em sua visita ao Brasil que a produção de biocombustíveis deve andar junto com a responsabilidade social e com o meio ambiente. Ela não quer que a produção de biocombustíveis afete a produção de alimentos como no México. No discurso ela quer proteção para a floresta, melhores condições de trabalho… Ela quer, nós queremos.

 

Os últimos quilômetros na auto-estrada foram tranqüilos, sem congestinamentos e pude chegar pontualmente em casa para o jantar.

 

Na Alemanha o biodiesel produzido da planta “Raps” (foto – campo amarelo) é adicionado ao diesel de petróleo. Mais e mais campos deixados para “que a natureza se recupere” estão sendo novamente cultivados e florescem até onde a vista alcança o amarelo-ouro no início da primavera. Onde eram cultivados cereais agora extensas monoculturas de raps. Ao passar por eles sentimos um doce gosto do cheiro do “raps” no ar.

 

Biomentiras

 

Assim repetimos no presente os mesmos erros cometidos no passado, como a amarga história da monocultura do açúcar no decorrer dos séculos no Brasil. Para que a palavra bio tenha o seu verdadeiro significado, vida, terremos que ver passar muitas luas. Por enquando vamos nos enganando com as biomentiras.

 

*(Na verdade a cana e a soja são plantadas no serrado e não na Amazônia como pensam os alemães)

 

 

Foto: Solange Ayres. Campo de “Raps” para a fabricação de bio-combustível.

Livre interpretacao do programa na Radio WDR5.

Parte das entrevistas traduzidas de “Bittersüße Geschichte des Zuckerrohs” de Karl Ludolf Hübener.

 

 

 

 

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Solange Ayres