Orgulho Hétero e Preconceito

“O vereador de São Paulo Carlos Apolinario (DEM), cujo projeto de lei que cria o Dia do Orgulho Heterossexual na capital paulista foi aprovado nesta terça-feira [2/8/2011] na Câmara, disse ao Terra que a criação da data busca apenas levantar o debate sobre “privilégios e excessos” de que supostamente se beneficiam os homossexuais e garantiu que não é homofóbico. “Meu cabeleireiro é gay. Ele me abraça, me beija, não tem nenhum problema”, disse Apolinario.”

Este é o primeiro parágrafo de uma notícia publicada no portal Terra sob o título ‘Meu cabeleireiro é gay’, se defende vereador do Dia do Orgulho Hetero. (A matéria completa, se você tiver interesse, está aqui.)

Considero esse primeiro parágrafo (e a matéria inteira) como uma pequena amostra de discurso que nos dá muitos elementos de reflexão. A começar pelo título e pela referência ao cabeleireiro, que é a mais óbvia e, na matéria, até um pouco caricata. A estratégia usada por Apolinario, de tentar mostrar que convive tão pacificamente com gays que não tem “nenhum problema” em ser beijado ou abraçado por um deles é a maior prova de seu preconceito. Quando convivemos de igual para igual com gays, com mulheres, ou com qualquer outra minoria*, não os usamos como justificativa para nossas convicções. Além disso, a homofobia não é o preconceito contra um gay, mas contra os homossexuais como grupo.

E é aí que as coisas se complicam. Porque um indivíduo pode não despertar preconceitos, mas os grupos minoritários, em geral despertam. O sociólogo alemão Wilhelm Heitmeyer, um dos estudiosos dos conflitos étnicos e culturais e da construção de inimizades baseadas em grupos sociais nas sociedades contemporâneas, já identificou como essa lógica se organiza. É como grupo que as minorias – imigrantes, gays, mulheres – são vistos como ameaça, porque isso evidencia que a “diferença” que representam não é uma exceção, algo que pode ser “tolerado” em um ou outro indivíduo, mas um aspecto de parte da sociedade, o que enfraquece o discurso da dominação, que se fortalece sempre que é possível ignorar as diferenças.

A vitimização

A criação do Dia do Orgulho Heterossexual em São Paulo – como o próprio “mentor” da proposta dá a entender no primeiro parágrafo reproduzido acima, ao longo da matéria e em todas as outras declarações que deu para a imprensa, inclusive à agência de notícias norte-americana Associated Press – é uma intolerância diante da diferença. A data é proposta pelo seu idealizador como um “resposta” à Parada do Orgulho LGBT. Apolinario acredita que, por terem o direito de, um dia no ano, desfilar pela avenida Paulista suas reivindicações e seu orgulho, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais e travestis estão TIRANDO algo dos heterossexuais.

Quando sugere que existem “privilégios e excessos” favorecendo os LGBT, Apolinario se faz porta-voz de uma teoria da conspiração segundo a qual um grupo estaria impondo restrições a uma maioria* silenciosa e indefesa. Isso é puro ressentimento.
Mais do que um discurso, uma reação psicológica, um aspecto da afetividade – como também pode ser classificado e comumente o é – o ressentimento é um conceito que ajuda a explicar um fenômeno social concreto: na sociedade contemporânea há uma valorização do discurso e do comportamento da vítima. O fenômeno foi identificado por Friedrich Nietzsche em Genealogia da Moral e, posteriormente, trabalhado por diversos autores, entre eles Max Scheler e Norbert Elias.

Simplificando, pode-se dizer que, em Genealogia da Moral, Nietzsche explica a vida social a partir de sentimentos como ódio, ciúme e vingança, detendo-se sobre o ódio dos fracos contra os fortes, que ele relaciona à moral cristã, um ódio reprimido que transforma a “fraqueza” em vitimização e em desejo de igualdade e justiça. Nietzsche já caracterizava o ressentimento como um aspecto da modernidade, e detinha-se exclusivamente nessa relação entre fortes e fracos.

Quando Apolinario tenta inverter a equação, pintando as maiorias como fracas e sujeitas a uma espécie de estratégia dos LGBT de impor seus valores e direitos a toda a sociedade, ele realiza uma manobra intelectual primária: passa a pintar como vítimas as maiorias. Só que as maiorias jamais foram silenciosas ou indefesas, justamente porque sempre tiveram nas mãos o poder de definir o que e quem tem acesso a quais direitos e privilégios.

Apesar de todas as garantias e direitos de que gozaram ao longo da história, as maiorias passam a retratar a si mesmas como vítima das instituições, da política, da economia, das condições sociais e até mesmo da mídia. Autônomo, individualista, narcisista, o indivíduo da maioria reluta em assumir a responsabilidade por si mesmo e por todas as desigualdades que o(s) grupo(s) a que pertence promoveram ao longo da história. Invertendo a lógica das forças nas relações sociais e lançando mão da vitimização, as maiorias conseguem, em primeiro lugar, esvaziar todas as reivindicações igualitárias e, em segundo lugar, manter-se dominantes e garantir uma relação de forças em que a elas sejam reservados apenas ganhos.

Exemplar desse segundo aspecto da apropriação da vitimização pelas maiorias é o que acontece com o feminismo. Cada vez que as mulheres, por exemplo, clamam por igualdade, é dito que elas estão “tirando” algo ou “competindo” com os homens por seu lugar na sociedade, por seus postos de trabalho, por seu direito a determinar o que será feito com seu corpo. Assim, também, cada vez que uma classe social desprivilegiada economicamente obtém acesso a algum bem ou serviço antes exclusivo das classes mais abastadas, é dito que elas estão “tirando” algo dos mais ricos. Para Apolinario, quando a minoria LGBT obtém o direito de expor seu orgulho, ela tira algo da “maioria”. E a maioria, por motivos óbvios, não quer perder seu poder.

Desde 1996, Wilhelm Heitmeyer analisa “respostas” hostis das maiorias às minorias na sociedade alemã. E já mostrou como a afirmação de identidades [e diferenças] pelas pessoas discriminadas desperta na maioria um ressentimento que toma a forma de hostilidade. A maioria não suporta compartilhar seus direitos e poderes. 

Para Apolinario, se a sociedade “tirou” algo dele e de seus iguais ao reconhecer o direito dos LGBT, há que haver compensação. E essa compensação deve vir em forma de lei, para formalizar não apenas que houve a perda, mas sobretudo que ninguém pode tirar nada de uma maioria. Porque as maiorias fazem as leis.

A dominação opera dessa forma há milênios. Institucionaliza-se, antes de mais nada. Institucionaliza-se sempre que possível. Em outras palavras, garante por meio das instituições que gerencia e controla que as pessoas têm valores desiguais em qualquer instância do espaço público: nas ruas, nos meios de comunicação, nos órgãos governamentais.

Ressarcimento

A lógica da vitimização ganha força a partir das políticas compensatórias adotadas pelos estados após a Segunda Guerra Mundial – especificamente em relação às vítimas dos campos de concentração. A proposta era ressarcir os sobreviventes do genocídio que caracterizou a guerra por perdas reais e provocadas pelo abuso inquestionável de poder. Mesmo assim, muitas das vítimas recusaram qualquer tipo de recebimento em dinheiro ou em acesso diferenciado a serviços sociais diante da certeza de que as perdas não podem ser ressarcidas.

Dentro do sistema capitalista contemporâneo, baseado no individualismo e no consumismo, a simples cogitação de que existem perdas que não podem ser ressarcidas é quase um sacrilégio. E é por isso que a lógica da vitimização se fortalece: acreditamos que qualquer contrariedade que nos é causada pode e deve ser paga pela sociedade. E assim, esvaziamos todos os contextos em que existe efetivamente a transformação de um indivíduo ou grupo em vítima: os casos de assédio moral e sexual, os casos de violência contra determinados grupos e até o bullying. Porque todos se sentem no direito de exigir uma compensação, até mesmo os heterossexuais que nunca, em nenhum momento da história, foram vítimas de restrição de liberdades, de violência, de perdas emocionais ou financeiras por serem heterossexuais.

A noção de que as maiorias podem ter direito a compensações, além de falaciosa, é apenas mais uma manobra racional para poder justificar e reforçar os preconceitos. Querer reivindicar compensações por prejuízos inexistentes é uma forma de incitar a homofobia. Retratar os LGBT como responsáveis por “tirar” algo de parte da sociedade, ou retratar as feministas como aquelas que querem “tirar” algo dos homens, é uma estratégia do discurso de dominação. LGBT, feministas são transformados em vilões.

Orgulho e preconceito

Imediatamente, ao ler o título e o primeiro parágrafo da matéria com que iniciei este texto, me lembrei do título do livro de Jane Austen escrito em 1813: Orgulho e Preconceito.

O livro da excelente Austen é um mergulho na sociedade britânica do século 19 e revela todas as contradições, hipocrisias, absurdos e pequenas ações ambíguas cotidianas sempre toleradas em nome da moral e dos bons costumes, além de contar uma história de amor. É esta a forma que a autora encontra para mostrar o que quase sempre nos recusamos a aceitar: que o orgulho, que muitas vezes se contrapõe ao preconceito, em geral é uma alavanca para ele. Dentro de cada um dos personagens de Austen, sejam eles bonzinhos ou malévolos (como costumamos dividir os personagens das obras de ficção a fim de sempre “torcermos” para o lado dos corretos), orgulho e preconceito coexistem, criando grande parte dos conflitos da trama.

O livro é uma preciosidade literária e não é minha intenção aqui falar sobre ele, apenas me apropriar do título de seu livro para uma reflexão. Crescemos acreditando que orgulho e preconceito são qualidades detestáveis – portanto, defeitos – em um indivíduo bem educado e amável. Vivemos acreditando que estamos livres de ambos os defeitos de caráter, que não nos dizem respeito e, talvez até, como consequência de tudo isso, desenvolvemos um profundo preconceito contra quem é orgulhoso ao mesmo tempo em que nos orgulhamos de não sermos preconceituosos. Apenas em um caso isso é verdadeiro: quando o orgulho é uma resposta ao preconceito e tem como objetivo reduzir sua força. Caso contrário, estamos sendo hipócritas.

A criação de um Dia do Orgulho Heterossexual em São Paulo é também um desdobramento dessa hipocrisia. Orgulhar-se de ser heterossexual corresponde a orgulhar-se de reforçar o poder da maioria e, dessa forma, o preconceito contra o movimento LGBT.

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* Só para lembrar, os conceitos de “minoria” e “maioria”não se referem prioritariamente ao número de pessoas de determinado grupo, mas ao fato de um grupo ser excluído de decisões, de instâncias de poder e do acesso a direitos universais enquanto outro tem todas as garantias nesse sentido.

 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)