Versão de “Atirei o pau no gato” segundo Dostoiévski (2)

II. O Julgamento Chica Chiconovna Franciscaia era uma mulher temente a Deus, de constituição frágil e seu tanto histérica. Vira no episódio uma significação transcendente, como se fosse todo ele uma resposta divina a seus pensamentos anticristãos. Porém, tendo pouca coragem e, ainda por cima, um amor-próprio cheio de autocomplacência, apesar de se sentir culpada, teve […]

Dostoievski2

II. O Julgamento

Chica Chiconovna Franciscaia era uma mulher temente a Deus, de constituição frágil e seu tanto histérica. Vira no episódio uma significação transcendente, como se fosse todo ele uma resposta divina a seus pensamentos anticristãos. Porém, tendo pouca coragem e, ainda por cima, um amor-próprio cheio de autocomplacência, apesar de se sentir culpada, teve como reação, numa tentativa de apaziguar sua má-consciência, acusar Rato Ratovitch pelo crime que ela mesma supunha cometer perante Deus. Portanto, no julgamento de Rato Ratovitch, ainda hoje rememorado pela gente de nossa cidade com algum temor e bastante emoção, e que se deu um mês após o ocorrido nas terras de R…, foi ela a principal testemunha da acusação.

Ora, sendo Rato Ratovitch um ser atormentado por idéias de inferioridade e, no entanto, de moral inabalável, passara a crer, de sua parte, que fora seu medo mesmo de Gato Gatovitch a mola detonadora do crime. Daí o ter-se declarado culpado perante o juiz, esperando nada menos que a forca ou o traslado para a Sibéria como paga pelo seu malfeito.

Gato Gatovitch – que compareceu ao julgamento enfaixado da cabeça às garras -, por sua vez, cônscio dos sentimentos que nutria por Rato Ratovitch no momento em que o graveto o derribou da charneca, deixou toda a platéia que lotava o tribunal do júri boquiaberta ao declarar ser Rato Ratovitch, pelo contrário, inocente.

Segundo Gato Gatovitch afirmou, ele próprio tentara o suicídio ao se precipitar no vale, sendo coincidência apenas que Roédor estivesse no mesmo local. Disse ainda ter Rato Ratovitch procurado evitar, por todos os meios, seu ato antinatural.

Todavia, o júri, como era de esperar, tomou as afirmações de Gato Gatovitch como abnegação própria do espírito cristão pelo qual nossa sociedade o conhecia, pois Felinosov era membro de instituições filantrópicas de toda a província e participava de academias científicas e grêmios literários, não apenas na Rússia, mas também na Europa.

Segue que Roédor foi julgado culpado, como em realidade a todos que assistiram à peça da acusação parecia, e sentenciado a trabalhos forçados. Partiria para cumprir a pena no dia seguinte.

Quanto a mim, ao ouvir o juiz pronunciar a sentença, saltei de minha cadeira para o centro do tribunal, bradando como um alucinado:

– Fui eu! Senhores, eu… eu sou o culpado! Fui eu que… atirei o pau no Gato Gatovitch!

Tinha o aspecto de um demente, pois no último mês me alimentara pessimamente e pouco me banhara, penitenciando-me pelo sangue derramado de um justo.

Debalde. Reconheceram em mim apenas alguém agitado por uma crise de febre nervosa e, contendo-me – pois esperneava e gritava desesperadamente -, arrastaram-me para fora da sala.

(TERMINA AMANHÃ)

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Marconi Leal