Matabicho Lingüístico By Bruno Maroneze / Share 0 Tweet Bom dia! No matabicho de hoje, mais um pouco sobre dicionários. Descubra como eles são feitos, aprenda um pouco mais sobre as informações que eles nos trazem (rubricas, já ouviu falar delas?), e entenda por que nem sempre se pode confiar neles. Mas criticar é fácil: vá fazer um para sentir como é! Se por um lado "dicionário é como salsicha", por outro o "lexicógrafo é como uma besta de carga"… Muita gente tem curiosidade de saber como é que se faz um dicionário. Para essas pessoas eu cunhei uma frase que eu sempre repito. "Dicionário é como salsicha: quem sabe como é feito não compra". (Espero que você não esteja comendo salsicha aí no seu matabicho…) Bom, claro que é uma mentira: eu sei como é feito e ainda assim eu uso dicionários todos os dias. Mas essa frase é mais para lembrar que não podemos confiar tanto neles quanto a gente imagina. Mas se apesar desse meu conselho, você ainda tem curiosidade de saber como se faz um dicionário, pode deixar que eu conto! Com a minha vastíssima experiência de ter colaborado em um dicionário e estar terminando mais dois, uma coisa eu sei do mundo da Lexicografia (que é um nome bonito para a técnica de fazer dicionários): "Na Lexicografia, nada se cria, tudo se copia". A Lexicografia vem de uma longa tradição, de séculos mesmo, de eternamente copiar os dicionários anteriores. E não há nada em si necessariamente ruim nisso. Francisco Adrados, talvez o maior lexicógrafo espanhol vivo, afirma que "a arte do dicionário é copiar e melhorar". Mas acrescenta: "Às vezes há cochiladas"… As cochiladas é que são um problema. Se o dicionário X errou, e o dicionário Y vai copiar do dicionário X, o dicionário Y precisa ter no mínimo o bom-senso de checar o erro para não perpetuá-lo. Principalmente porque é pelos erros que se percebem as cópias. Um exemplo bem bobo: "gato". (Abro um parêntese: você já parou para pensar em como é difícil definir uma palavra que corresponda a algo cotidiano, do nosso dia-a-dia? Pare o seu matabicho por um momento e pense: como você pode definir os nomes dos alimentos que você está comendo? O nome dos utensílios que está usando? O que é uma colher, por exemplo? Ou um prato? Difícil, né? Fecho o parêntese.) O Aulete (já ouviu falar dele? Aquele em cinco volumes, capa azul, muito usado para enfeitar estantes antigamente) define de uma maneira bastante prática, na minha opinião: gato. animal doméstico, mamífero, da ordem dos carnívoros, família e tipo dos felinos (Felis catus). Já o nosso velho amigo Aurélio acrescentou um dado interessante: gato. Animal mamífero, carnívoro, felídeo (Felis cattus domesticus), digitígrado, de unhas retráteis, domesticado pelo homem desde tempos remotos, e usado comumente para combate aos ratos. Ora, ora! Como diz a Aparecida, minha antiga professora de Lexicografia nos tempos da faculdade: "Estamos falando de um gato ou de uma ratoeira?" Quem de vocês que estão matabichando aí usa gatos para combater ratos? É claro que isso, digamos, "vem no pacote", mas nos tempos modernos, pouca gente tem um gato em casa com a finalidade principal de caçar ratos. Isso me parece bem uma escorregada do Aurélio: não precisava acrescentar essa informação. Até aí, tudo bem. Mas vamos ver o que diz o dicionário Michaelis (que já tem 10 anos, e nem fez muito sucesso): gato. Mamífero carnívoro doméstico da família dos Felídeos, de grande utilidade para a destruição de ratos (Felis cattus). Não, povo da Melhoramentos, fiquem tranqüilos que ninguém percebeu que vocês copiaram do Aurélio… (Mas talvez o Aurélio já tenha pegado essa informação de algum outro dicionário anterior que eu desconheço. Se alguém souber de algo aí, avise!) Acho que já deu para vocês perceberem o lance das cópias. Agora vou comentar outra questão interessante que envolve dicionários de grande porte: os múltiplos redatores. A questão é bem óbvia: dicionários grandes exigem equipes grandes; equipes grandes exigem uma coordenação rigorosa. Mas não dá: por mais que se tente, os estilos individuais dos redatores aparecem, surgem problemas de falta de uniformização ou até mesmo (e aí já é um caso mais grave) verbetes dobrados. Um caso célebre é o das chamadas "rubricas" ou "marcas de uso", sinais que informam ao consulente em que situações a palavra é usada. Por exemplo, observem o verbete "macete", do Aurélio: macete. (…) 3.Bras. Gír. Recurso muito engenhoso ou astucioso para se fazer ou obter algo (…) Na acepção 3, temos a primeira rubrica "Bras.", indicando tratar-se de um brasileirismo (palavra usada e provavelmente originada no Brasil), e a segunda rubrica "Gír.", indicando tratar-se de uma gíria. Agora, observemos outro exemplo: seringa. (…) 3.Fig. Pop. Pessoa importuna ou esquisita. Aí temos a acepção 3 de "seringa" com a indicação "fig.", que nos diz que esse sentido é figurado; e a rubrica "pop." nos indica que é um uso popular. Agora, parem e pensem: qual será a diferença entre a "gíria" de "macete" e o "popular" de "seringa"? E por que razão não poderíamos também dizer que a acepção 3 de "macete" também é figurada? Aí está: verbetes diferentes, feitos por redatores diferentes, apresentam critérios diferentes. Resumindo, não leve as rubricas tão a sério. Elas são boas indicações, mas freqüentemente não passam disso. (Tem também o caso interessante de uma rubrica, "Geogr. pol." [de "Geografia Política", claro], que foi usada no Aurélio em um único verbete ["zona"], caso claro de preferência de determinado redator.) Para finalizar por hoje, como eu mencionei ali em cima, vários redatores podem causar o problema de verbetes dobrados, ou seja, um faz um verbete, outro faz outro, e ninguém percebe que os dois fizeram na verdade o mesmo verbete. Vamos a um exemplo, agora do grande Houaiss: ganza. s.m. 1 mús B N.E. objeto oco de folha-de-flandres, que contém grãos ou seixos e que, sacudido, funciona como instrumento musical (no gênero de um maracá) 2 dnç AM dança cujo nome provém desse instrumento 3 mús B reco-reco (instrumento de percussão) ¤ etim orig.obsc. ganzá. s.m. (1938 cf. PD) 1 mús B N. espécie de chocalho formado por um cilindro de metal contendo sementes ou seixos; canzá 2 mús AM tambor cilíndrico de tronco escavado; canzá 3 mús BA m.q. reco-reco 4 dnç dança amazonense acompanhada por ganzá (‘tambor’) ¤ etim quimb. nganza ‘cabaça’ ¤ sin/var amelê, pau-de-semente, xaque-xaque, xeque, xeque-xeque, xique-xique Notaram? Tanto "ganza" quanto "ganzá" se referem 1. ao instrumento; 2. à dança com acompanhamento desse instrumento; e 3. ao reco-reco. Apenas o verbete "ganzá" acrescenta que pode ser um chocalho ou um tambor. Ou seja, é claramente um caso em que os dois redatores fizeram cada um o seu verbete, e não perceberam que estavam falando da mesma coisa. MAS… Seria tolo da minha parte ficar aqui caçando problemas nos dicionários e ficar por isso mesmo. Afinal, eu também faço dicionários (ou melhor: eu brinco de fazê-los), e sei que todos esses problemas que apontei aí são apenas detalhes que passaram num pente fino que exigiu tremendos esforços para ser feito. Devemos usar os dicionários, sim, sem dúvida, eles são utilíssimos; mas devemos ter a consciência de que eles foram feitos por seres humanos, e portanto apresentam erros. Afinal, a melhor definição de "lexicógrafo" continua sendo aquela feita por Samuel Johnson, grande lexicógrafo inglês do século XVIII: lexicógrafo. um autor de dicionários; uma besta de carga inofensiva, que se ocupa em perseguir o significado original das palavras e detalhar sua significação.