Ensaio a Caverna das Aparências

[…]Se uma pessoa quiser, durante muito tempo e persistentemente, parecer alguma coisa, consegue-o pois acaba por se lhe tornar difícil ser qualquer outra coisa.” (Friedrich Nietzsche, in ‘Humano, Demasiado Humano’)

Pode alguém ser uma ficção? Pode o mundo das aparências ser o único real? Será que as nossas relações se acomodam em um mundo-verdade acrescentado pela mentira? Será o mundo apenas uma demonstração do uso da aparência e do copiar daquilo que é eficaz? Há sempre a máscara das expressões fisionômicas amistosas?

Em um primeiro olhar sobre a questão, esse enfoque Nietzschiano acima apresenta um mundo das aparências como uma mentira, uma cópia inexata de outro mundo, o mundo-verdade. No contraponto, prevalece o dogma de que as aparências enganam.

Crescemos na dualidade da aparência. Não é a toa que Eva, mesmo não estando só no paraíso, é considerada a pecadora, e Adão o santo. Adão poderia ter chutado a serpente após a proposta indecente, mas ficou quieto e Eva levou a fama.  Logo, a aparência já nasceu no paraíso, diríamos que foi amante de Eva. Todavia, não saberíamos dizer se Eva é a essência ou se Adão é a aparência. Pode ser que a aparência dependa da referência.

De um lado, independente de contínuos adjetivos e estereótipos atribuídos a civilidade ou quem sabe a falta dela, condena-se à fogueira a quem foge do padrão de persona bon grata, aliás,  a quem foge do rebanho.  Criam-se os personagens nas hipocrisias, nas máscaras, nas aparências, nos ‘culpados sociais’ sem culpa.

Diante dessa questão, poucos estão dispostos a serem excluídos ou deletados, preferem representar a farsa da aparência, ajustar o mesmo passo, calçar o mesmo sapato, usar os mesmos talheres e talvez encenar a velha história. A verdade de si passou a ser desinteressante. Representa a farsa intolerável do metodicamente equilibrado.

Por outro lado, o amor de Helena de Tróia por Páris foi o engano que não se fez existir. Na antiguidade, prevaleceu à aparência frente os inimigos, desistiu-se da guerra, e o cavalo como um presente de paz foi um presente de grego. Pensamos na aparência como um presente ou mesmo um sinal de rendição ao exército inimigo. Pensamos que ela possa ser o que ninguém deseja,  mas necessária para criar a ilusão de paz antecipada. Pensamos nela com o repúdio ao nocaute.

Dependendo da carência ou ingenuidade, enxergamos o que não existe, precisamos que seja mais que uma aparência, que seja a verdade. Basta olhar fotografias e perceber o quanto elas enganam, o riso que mascara a dor. Em um sentido maquiavélico, a boa conduta leva ao domínio e ao poder. E as aparências podem até mais recompensadas que o mérito.

Imaginemos a situação: uma mulher perfeita fisicamente, culta, inteligente, supostamente independente financeiramente, pode ser rotulada ou ‘culpada social’ de atrair homens ao seu convívio, e de tudo que envolva a aparência e atração. E mesmo que ela seja apenas uma sedutora natural, por ser bonita, inteligente, pode sempre parecer à sociedade ser uma sedutora, femme fatale ou qualquer adjetivo, mesmo que nem tenha essa intenção. Só que em um olhar com menor juízo de valor, essa questão, vai além do gênero, pois homens e mulheres podem ser rotulados por se exporem de uma forma socialmente, voluntária ou involuntária.

Sob outro prisma, julgar é humano. O julgamento das aparências acontece na questão de cor, imagem, opção sexual, ideologia, preceitos, dúvidas, atitudes, grana, formação ou mesmo palavras utilizadas.  No fundo da Caverna de Platão, analogicamente, a Caverna da Aparência é tudo que possa ser diferente e que julgamos. Então julgamos o dia inteiro. A aparência que está no interior da caverna é a referência, leva o homem a pensar que vê a realidade. Todavia, não é, seria apenas a sua própria sombra.  Como sempre viveu ali, cria o seu juízo porque não conhece outra referência.

Diante desse parâmetro, a aparência vira a comunicação.  A própria quantidade de perfis criados em diferentes papéis, ao longo do dia, pode sustentar inúmeras conclusões e imagens ao mundo externo. Se usarmos óculos escuros, queremos nos esconder. Se apresentarmos os nossos dotes intelectuais, seremos prepotentes. Se lutarmos pelos nossos ideais, seremos revolucionários, complicados. Se somos gordos, somos compulsivos. Se somos feios,  somos desajeitados e deselegantes. Não estamos livres de sermos julgados pelos nossos excessos ou faltas, pois se até mais bela, mais feminina.

Logo o julgamento é inevitável.  Primeiro, porque foge totalmente do padrão de comportamento habitual e, depois porque pareceu (e aqui de novo as aparências), uma fuga, legitimando o comportamento da mulher perturbada, do louco, do ladrão, do guloso, do mentiroso. Mas e se um dia alguém mudar a referência e mudar a rota, o que prevalecerá?

Então, na vida, sempre o olhar poderá ser para o primeiro pensamento e, mesmo que o outro até mude, o rótulo está dado. Além disso, existem os postulados da disponibilidade para acasalamento, dos componentes biológicos ou componentes culturais. Algo como incorporar a “Teoria da Aparência do Direito”, ou seja, haverá sempre um valor jurídico em determinados atos, que em princípio não teriam validade, mas serão considerados legítimos para proteger a humanidade.

Logo não basta olhar apenas como o outro se conduz, pois pode ser uma verdade ou uma mentira. Ademais, mudamos rápidos de opinião sobre as pessoas devido a nossa pressa em moldar um protótipo para ela. As pessoas podem se mostram como lhes convém.

A partir desse princípio, que sempre julgamos, a aparência vem antes da referência e esta permanece como um primeiro olhar que se perpetuará como rótulo. Mas se a aparência antes for virtual e depois passar a ser real, poderá haver um rótulo para o real, e um para o virtual. Se as aparências enganam na realidade, imagine no virtual em que criamos os perfis que desejamos.

Imaginamos agora a imagem que alguns passam no mundo virtual, de divertido, amoroso, que nos dá uma imagem. Mas na vida real, pode ser um tímido, muito além da imagem que vende de descolado. Todavia, pode ser que exista a aparência virtual, a aparência real e um estereótipo para cada uma, caso a pessoa no mundo real seja diametralmente oposta a virtual, mas não com tanta intensidade assim; mas, ainda  existirá essa diferença.

Pode haver mais de um estereótipo, mas que o primeiro, o virtual, pode cair quando existir o real, pois nada vence o olho no olho, o ouvir a voz, a comunicação gestual, ainda mais se você conhecer elementos da família da pessoa. Mas em alguns casos, a aparência, o estereótipo real vence. Uma pessoa pode ser melancólica, por exemplo, pode postar um facebook rosa para todos, la vie en rose, mesmo que a pessoa possa mudar ao longo da vida, supondo que está numa fase mais feliz ou coisa parecida, ela sempre será alguém com tendência melancólica.

E se antipatizamos com o outro apenas porque ele não corresponde as nossas expectativas. Colocamos, metaforicamente, no seu peito a estrela de Davi e dizemos: não presta, não é confiável. Mas ninguém é essencialmente mau ou bom. Amigo ou inimigo. Pode ser que não seja essa a questão, pode ser apenas o padrão do mundo, vendo só o que enxergamos.

Além disso, o universo das regras gera percepção. Imagine quando as pessoas acham que algo está escondido, desejam que o real não seja real, apenas a aparência. Não se convencem com a essência. É o que acontece com o amor patológico, o outro não quer, deixa claro, mas um lado quer enxergar o que não existe.

Lembrando de Saramago, em “Ensaio sobre a Cegueira”, a  realidade pode nos cegar e o foco nas aparências, pode nos afastar da essência. Presos na Caverna de Aparência, induzimos que as sombras sejam a referência. Pode ser Nelson Rodrigues, ‘ a vida como ela é’,  e quem parece, pode não ser quem é; e o que não parece, mas é.

E no final, sobra, apenas, Nietzsche: “vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de outra vida melhor”.
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Luciana Santa Rita