Navegando no Cotidiano By Luciana Santa Rita / Share 0 Tweet “ […] As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois “amo-te” ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a atividade da alma. […] (PESSOA, F. Livro de Desassossego, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 119). Casualmente algumas pessoas podem entrar pela janela da vida e se tornarem intensamente íntimas. Nesses encontros é fácil a percepção se elas serão relevantes ou não à medida que podemos compará-las às pessoas que já estão em nossa vida há muito tempo e não alcançaram tal relevância, acompanhando-nos, apenas, no agir do tempo e não no agir da nossa alma. Por um lado, talvez a carência nos leve a crença em relações duradoras no primeiro contato, sem percebermos as diferenças ou mesmo a necessidade de nos relacionarmos intimamente sem nos machucarmos, apenas deixando o outro livre para bater as suas asas ou se afastar em direção oposta. Por outro, não poderíamos esquecer o que Luís Fernando Veríssimo declama que “as pessoas só se definem no seu relacionamento com as outras”. Nesse sentido, somos o que somos não por nós mesmos, mas pelo que construímos em nós nos relacionamentos com os outros. Frisando Veríssimo, “ou seja, ninguém é nada sozinho, somos o nosso comportamento com o outro”. Nesses insights raros e efêmeros, elas ganham espaço em todos sentidos, seja na convivência, seja na prioridade, seja na dedicação de tempo, seja na constância de ações ou mesmo no pensamento em comum. Torna-se normal desejar o cotidiano do almoço, do jantar, do cinema ou mesmo do desejo de comer pipoca no sofá. Parece um encontro de alma ou de razões. É normal falar sem motivo, perder a vergonha de falar de si, contar os segredos ou mesmo comemorar o dia. Parece que essas pessoas se mostram como anjo de confiança. Sentimos fortalecidos quando a intimidade está no instigante jogo da sedução frente à severa forma do vazio. Sempre quando temos essa percepção, ainda que momentânea, o sentimento é que é essas pessoas são parte do nosso eu, principalmente, porque a intimidade é tão intensa que começamos a partir das semelhanças, minimizar as diferenças, esquecer os agravos, relevar as falhas e valorizar o que o outro tem de melhor. Mencione-se que algumas pessoas podem chegar e ficar em nossa vida por um século ou apenas por uma estação. Em geral, se sentimos o mesmo valor do encontro de intimidade, sorrimos do passado, comemoramos o presente e sinalizamos um futuro, com um pensamento comum de certeza. No entanto, existem outras adjetivações da intimidade, principalmente quando ela é confundida como forma de se posicionar na sociedade e garante apenas um tipo de audiência exterior. Nesse caso se confunde como as lágrimas na chuva ou mesmo se perde ou se desqualifica como as motivações dos encontros casuais. Estranho essa contradição ou paradoxo sobre intimidade? Entendo que não, apenas que a certeza da intimidade emocional pode também gerar a incerteza da intimidade física. Mas o que significa essa intimidade, já que sempre mudamos o formato das nossas relações quando o tão aclamado ”tempo que passa” passa a ser a nossa maior justificativa para as nossas posições perante o outro. Tempo esse que pode ser de uma noite, de um ano, de uma década ou mesmo de uma vida. Quem poderia desconsiderar que o normal e até aceitável, é o termo da ”síndrome do dia seguinte”. Quem poderia desconsiderar que na nossa busca por intimidade com amores, família e amigos, desejamos a solução de resposta para o dia, ou mesmo para o ontem, inserindo essa pessoas em memórias ou histórias que não são comuns. Um das certezas é que sempre queremos memórias instantâneas e gratificantes e esquecemos que à noção de avanço da intimidade é sempre uma via de mão dupla, pois dependendo da urgência da nossa necessidade, sejam físicas ou emocionais, fabricamos o melhor amor ou o amigo ou, na maioria dos casos, o melhor desamor ou desafeto. O termo pode ser estranho “fábrica”, mas a pressão contemporânea de estamos envoltos em relações, a fugacidade e as soluções temporárias de companhia parecem ser o caminho mais fácil para a continuidade e para aceitação do nosso eu perante a sociedade. Todavia, me parece que a intimidade física é muito mais fácil de alcançar, seja pela convivência, pelos laços familiares, profissões e planos comuns ou mesmo pelas coincidências do cotidiano. Intimidade física pode-se exigir pouca dedicação emocional e, assim, se torna mais fácil a permanência, afinal não há cobrança. Poderia dizer que encontramos até na balada. Essa intimidade é contemporânea, aceitável e fácil de lidar, pois não exige tempo, dedicação e a escuta. No entanto, o que fazer quando vem o desejo de estender a intimidade física para emocional, ou seja, para ser ter no outro à companhia duradora, mesmo sabendo que quanto maior seja a intimidade ou de se chegar ao outro, maior passa a ser possibilidade da perda. Devemos lembrar que a paixão e o encantamento podem ser passageiros e que o normal em qualquer relação é construir uma muralha envolta à medida que o outro evolui e procura a atender novas necessidades, principalmente se o que encantou anteriormente passa agora ser despercebido ou cai de moda. Logo, a grande questão do avanço de intimidade é o fato de que quanto mais íntimo, maior é a possibilidade da dor da perda. Sem dúvida, a cobrança incondicional pela atenção é uma dos grandes riscos, principalmente, se o outro cansa facilmente dessa intimidade. Penso que as pessoas entram por alguma razão na nossa vida e saem por inúmeros motivos, seja pelo desencantamento, decepção, divergências ou mesmo projetos diferentes. Todavia o que tenho aprendido é que não basta a razão querer discutir quando o sentimento não está com vontade de diálogo. Quando isso acontece, um vai e o outro fica. E o que fica da intimidade do dia-a-dia os fatos revelam apenas o seu lado negativo, ou seja, o excesso do poder em convencer o outro a respeito de sua individualidade. E como diz José Saramago: “No coração da mina mais secreta, no interior do fruto mais distante, na vibração da nota mais discreta, no búzio mais convolto e ressoante, no silêncio mais fundo desta pausa, em que a vida se fez perenidade, procuro a tua mão, decifro a causa de querer e não crer, final, intimidade.