Outras Palavras By Felipe Damorim / Share 0 Tweet Em comemoração aos 100 Anos de Imigração Japonesa, vou dedicar um tempinho para fazer um panorama da literatura nipônica. Para começar, o primeiro romance da humanidade, com comentários bibliográficos. Existem formas de arte que são específicas de certas culturas. Lévi-Strauss gastou um bocado de tempo registrando o hábito de índios brasileiros de pintar suas faces com padrões dos mais diversos. Os Nazca do Peru curtiam desenhar na terra… em proporções astronômicas. No Oriente Médio antigo, perfumaria era uma forma de arte e os polinésios levam muito a sério suas tatuagens. E os europeus tinham a literatura. Pois sim. A literatura, ou pelo menos o romance, é uma forma de arte européia, que começou a se disseminar no século XVI. Isso explica porque todos os principais autores e obras estão divididos entre uns três ou quatro países, ou suas antigas colônias. Também explica porque autores supostamente afastados desse eixo, no Japão ou Arábia, acabam escrevendo como autores europeus. Agora que vocês compreenderam isso, que já entranharam esse conhecimento, vocês estão prontos para saber que o que acabo de dizer aí em cima está errado. Quer dizer, não totalmente errado… Romances são mesmo uma criação de europeus desocupados por excelência. Mas o primeiro romance da humanidade, a primeira história em prosa sobre um personagem principal e coadjuvantes atravessando um período de tempo tomado por ações que constituem uma trama… bom, não é da França, nem da Inglaterra, e nem é da Espanha de Cervantes. O primeiro romance é japonês. Estou falando de Genji Monogatari, ou A História de Genji escrito por Murasaki Shikibu, lá pelos idos do século IX. Livrinho peculiar, …Genji é um calhamaço gigante, que conta com mais personagens que todo o elenco de Guerra e Paz e uma história meio difusa e não-linear. Mas é um retrato cuidadoso da sociedade japonesa durante o período Heian (o fim do período clássico) e, em termos de estilo, um tour de force magnifíco e até o momento inigualado por qualquer autor ocidental. Infelizmente a língua portuguesa ainda não tem nenhuma tradução do Genji Monogatari, coisa que, creio eu, deveria ser remediada o mais cedo possível. (O e-mail da Estação Liberdade é editora@estacaoliberdade.com.br, caso alguém queira engrossar a pilha de pedidos que já enviei para lá.) Caso você não queira esperar, e não domine o japonês, a opção é a tradução em outra língua: em inglês, a melhor versão é a Tale of Genji de Royall Tyler, publicado pela Penguim USA. Preocupada em preservar as idiossincrasias do estilo de Murasaki e cheia de notas explicativas, a versão de Tyler é bem superior a outras versões em inglês ou em outras línguas. A versão em espanhol, La Historia de Genji, da Ediciones Atalanta (em dois volumes) se baseia na tradução de Tyler. Já a Storia de Genji, edição italiana da Einaudi, se baseia na versão de Arthur Waley, que já foi a tradução canônica do livro para o inglês (mas toma liberdades para simplificar a história que Tyler não ousa). Além disso, ocê também pode escolher ler Le Dit du Genji, única outra edição que sei que foi traduzida direto do japonês, pelo orientalista René Sieffert (também em dois volumes; também um trabalho bem decente). Ignoro se existe uma tradução para o alemão. Não leio essa língua maldita. Semana que vem, volto à carga com um apanhadão de autores japoneses modernos. Um velho tarado, um samurai suicida e dois outros, que estão vivos, bem, e se odeiam.