Outras Palavras By Felipe Damorim / Share 0 Tweet Continuando a série sobre literatura japonesa, que devia ter só duas partes, mas fazer o quê, me empolguei, falo um pouco sobre Jun´Ichiro Tanizaki. Autor de "Irmãs Makioka", "A Chave" e "Diário de um Velho Louco", o homem foi o principal autor do seu tempo, influência inegável para a literatura do Japão e, na minha humilde, seu principal representante na literatura mundial. Isso tudo, e ainda por cima, era um safado. Entre a publicação de “A História de Genji” e o século XX muita coisa aconteceu na literatura japonesa. Muita coisa, aliás, que não me interessa e, como sou só um diletante descompromissado, posso me dar o luxo de pular. Afinal, por mais intrigantes que fosse o romantismo nipônico ou a tradição dos monogatari, tudo isso só serviria para adiar minhas poucas boas palavras sobre aquele que considero o melhor escritor japonês: Jun´ichiro Tanizaki. Tanizaki surgiu em um período crítico da história do Japão. Aí vai uma aula grátis: no início do século XX o império insular japonês se encontrava em uma encruzilhada. A cultura tradicional da nação erodia, vítima de um cerco causado pelos imperialismos europeu e norte-americano e a necessidade de industrialização, o que geraria a modernização da economia e o fim da recessão, mas também poria em xeque as estruturas sociais herdadas dos séculos passados. Sem dúvida não ajudava muito o fato de que, até então, a prática japonesa de relações externas era marcada pelo “isolamento exuberante”, como o que encontramos na velha Inglaterra. (Piadinha tangente: diziam que, se um dia névoas espessas cobrissem o Canal da Mancha, impedindo a navegação, a manchete do TIMES só poderia ser: “Canal da Mancha bloqueado. Europa está ilhada.” Pois bem, os japoneses também eram assim.) A industrialização veio acompanhada por uma inserção do Japão na economia mundial… e por extensão, de uma ocidentalização que alterou dramaticamente os costumes e modos de ser de um povo. E Tanizaki estava lá, bem no olho do furacão, tomando notas. E que bons livros suas notas se tornaram. Toda a obra de Tanizaki gira em torno de basicamente dois eixos temáticos, que não só se tocam mas se misturam de forma íntima, úmida e ofegante. De um lado temos a contraposição entre o Ocidente e o Japão Tradicional. Este último é representado por velhos patriarcas e intelectuais, sempre às voltas com jovens garotas fascinadas pelos novos costumes e produtos vindos do nosso lado do planeta. O molho da coisa toda é a sexualidade, o veículo preferencial de Tanizaki para expressar os conflitos entre seus personagens, suas naturezas internas e, em última escala, os dilemas do período de transição histórica do Japão. É muito fácil pensar em Tanizaki como apenas um velho pervertido. Certos estereótipos com relação aos japoneses certamente não ajudam a diluir essa imagem… esse é, afinal de contas, o país que deu ao mundo a máquina de masturbação e filmês pornô estrelados por mulheres e enguias. Não, não inventei nada disso, e posso provar (Mas vocês vão preferir que eu não o faça.) De qualquer forma, Tanizaki não é realmente mais licensioso que autores contemporâneos e europeus, como Henry Miller ou Anaïs Nin. Com o diferencial que o escopo de Tanizaki era maior e mais complexo que o de Miller (que estava só escrevendo sobre o próprio umbigo, na época em que não era moda) e seu estilo mais inteligente e profundo que o de Nin (que, vamos e convenhamos, é só uma autora de Sabrinas com um pouco de sal.) O sexo em Tanizaki, ainda que seja frequentemente fetichista, ou com tons de sadismo e ilegalidade, serve mais como uma situação extrema, onde é rompido o verniz da propriedade social e se pode entrever a realidade dos desejos e pulsões de um povo em mutação. Mais ou menos como Império dos Sentidos fez no cinema, a obra de Tanizaki desfraldava em público desejos íntimos como uma forma de demonstrar uma verdade mais essencial e profunda. Naquele que é seu melhor romance, “As Irmãs Makioka” é o sexo que distingue a jovem Taeko e de suas irmãs tradicionalistas, e marca o abismo crescente entre as gerações japonesas da época. Por outro lado, em “Diário de um Velho Louco” sexo é o termo de negociação entre um ancião lúbrico (“velhinho safado”, se preferir) e sua nora ocidentalizada e consumista. O sexo permeia a obra de Tanizaki porque, em sua concepção, ele permeia o mundo, reproduzindo e retroalimentando todos níveis de relação social. É difícil achar algo que explicite melhor essa visão que o romance “A Chave” em que um casal, ao espionar mutuamente as indiscrições registradas no diário um do outro, em um jogo erótico de voyeurismo, terminam por finalmente alcançar uma intimidade que antes não desfrutavam. Muitos escritores dedicaram suas obras à licensiosidade, lubricidade, erotismo… safadeza, enfim. Mas foi só Tanizaki que combinou a paudurescência com análise intelectual de qualidade. Tanizaki não é o melhor escritor japonês apenas por sua capacidade estética ou pelo vasto corpo de contribuições que legou à literatura, mas porque entendeu e registrou de forma única o espírito de seu tempo. Não é bolinho… a captura do genius sæculi é truque que requer rara sensibilidade, e Tanizaki ainda por cima tratou de representá-lo com elegância e tramas envolventes. Em matéria de obsessões sexuais, ninguém supera Tanizaki, que está para Sade como um arquiteto está para um engenheiro. Mais sua obra contém mais: todo um povo, de almas nuas.