A vingança da decoreba e a cura do câncer

Saiu na Folha de São Paulo deste sábado (22/01/2011), um artigo de Hélio Schwartsman intitulado “A vingança da decoreba”. O artigo trata de um trabalho recente, publicado na revista Science, sobre o desempenho de estudantes que optaram pelo método da decoreba e pelos que optaram pela dita “aprendizagem significativa”, baseada em mapas conceituais e relações entre os conceitos e idéias. Pelo título, depreende-se que o malfadado método da memorização ganhou a parada: Os alunos que se utilizaram de leitura e recursos mnemônicos para aprender tiveram uma média de acertos 50% superior aos que tentaram compreender os conteúdos através da significação.

Este artigo me lembrou de um filme que assisti esta semana, chamado “Morrendo por não saber” (clique para baixar), um documentário de 2006 sobre a “Terapia Gerson”, um tratamento baseado em mudanças de estilo de vida e em uma infusão de alimentos anti-oxidantes que, segundo determinadas evidências, seria capaz de curar o câncer e uma série de outras doenças crônicas. Mas qual é a semelhança? A semelhança é que o argumento central do filme trata justamente sobre a inadequação do método científico. Vários críticos da Terapia Gerson foram entrevistados pelo documentarista e perguntados: O que seria necessário para que você fosse convencido quanto à eficácia desta terapia? A resposta, com algumas variações, foi a seguinte: Um estudo duplo-cego randomizado (aleatório) que a comprovasse.

Dito isso, vamos voltar para o “paper” da Science. É interessante observar que o método de investigação para o desempenho dos estudantes de ambos os sistemas de aprendizagem é um exame. Isso mesmo. Uma prova, aplicada depois de uma semana, para ver quem tinha aprendido mais. Exposto o brilhante método de investigação científica do aprendizado humano, volto de novo para o filme e, desta vez, para os defensores da Terapia Gerson. “O que significa comprovação cientifica?” perguntam adeptos e sobreviventes da terapia durante todo o filme. E argumentam: O conhecimento científico está tão dominado pelos interesses de mercado do dito “complexo médico-industrial”, que só o que pode ser testado, de forma a produzir “evidência”, são as drogas que eles mesmo produzem. Eis, finalmente, o paralelo com o artigo da folha: É a decoreba que é boa para aprender ou é a prova que é boa para testar o aprendizado por decoreba?

Não tenho como sair por ai defendendo a Terapia Gerson para a cura do câncer, porque eu não a conheço. Mas no que se refere ao aprendizado, fico com a segunda opção. E é incrível como provas, estas coisas infinitamente mais questionáveis do que os “duplo-cego randomizados”, volta e meia são usadas para aferir capacidade, desempenho e qualidade. São os ENEMs, ENADEs e Exames de Ordem, frutos da má intenção de corporações e do Estado, que seleciona para mascarar o fato de não prover ensino para todos, que se proliferam por ai, com pleno respaldo do fetichismo da “evidência”. Se foi bem na prova, é porque aprendeu. Até parece.

Na minha faculdade, tive um professor de fisiologia que se utilizava da aprendizagem significativa para ensinar endócrino e sistema digestivo. Este professor fez um estudo, cujo banner ficou um bom tempo exposto pelos corredores do Bloco S, onde tinhamos aula, para todo mundo ver. O estudo comparava o desempenho – sim, medido por provas… – dos estudantes na parte dele, ensinada através dos mapas conceituais e na de um outro professor, que cuidava da parte de cardiologia e sistema respiratório, através de aulas expositivas, conhecidas também como “magistrais”. Com um detalhe: Este professor que dava as aulas magistrais, essas de falar sozinho sem parar por uma hora e meia, era um excelente professor. Um viés a menos no estudo dele. Encurtando a história, o estudo realizado no semestre deu vitória ao método significativo, para o qual grande parte dos alunos torcia o nariz. Qual dos dois tem mais evidência? O Estudo de uma semana publicado na Science ou o estudo de seis meses, pendurado na parede do corredor de uma pequena universidade do sul do Brasil?

A “evidência”, o “comprovado” e o “aferido” são coisas que dão muito o que pensar. É claro que a inserção da ponderação e da testagem ou, em outras palavras, do método científico na cultura humana foi uma grande revolução, que veio para iluminar o nosso mundo, até então assombrado por “trevas” e “demônios”. O único problema é que no lugar do bloqueio “divino”, que confinava a verdade dentro dos mosteiros, restrita aos dogmas da igreja, veio o bloqueio do dinheiro, que confina a verdade dentro do terreno do rentável. Saber se determinado teste está à serviço da verdade ou do laboratório que quer lucrar e do governo que não quer gastar é um grande desafio. Infelizmente, parafraseando o filme, acho muitos continuarão pagando por não saber.

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Abaixo os Exames de Ordem

Esses dias, na Zero Hora, o ex-governador Alceu Collares partiu para cima da OAB. Ao invés de se meterem nas aposentadorias vitalícias dos ex-mandatários do estado, deviam cuidar do próprio umbigo e acabar com o Exame da Ordem, um exame que corporativamente cerceia a liberdade profissional de milhares de egressos dos cursos de direito de todo o Brasil. 

Cito isto, no finalzinho deste texto sobre provas e avaliações, porque li recentemente um texto muito bom sobre o assunto. A única diferença é a profissão: Ao invés do Direito, a crítica ao exame de ordem em questão é o que é proposto para médicos. Confiram aqui a dica neste link: Exame de Ordem para a Medicina volta a tramitar no Congresso, do Blog do CALIMED.
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Diângeli Soares