Kafka, Kundera, Rilke

Para os que não sabem, Franz Kafka, Rainer Maria Rilke e Milan Kundera possuem algo mais em comum além da veia literária. Foram todos tchecos, sendo os dois primeiros nascidos em Praga e o último em Brno, a segunda maior cidade tcheca, situada ao leste de Praga, na região da Morávia. É claro que tanto Kafka quanto Rilke foram alemães no que se trata de suas formações e línguas maternas, e que a República Tcheca não existia na sua forma atual, mas sim como a região da Boêmia, que fazia parte do Império Austro-Húngaro. De qualquer forma é inegável a influência que estes autores deixaram nesta cidade.

O homem tcheco comum não é nacionalista, mas sim orgulhoso de seu país. Normalmente seu julgamento é ofuscado por informações alheias ao assunto principal, e discutir com estas pessoas é, no mínimo, frustrante. Estas discussões infrutíferas ocorrem mesmo entre os jovens mais intelectualizados. Não se julga Kafka pela sua obra, e sim pela sua origem germânica. E sendo ele de origem germânica, seus livros não poderão ser bons. E toda uma teoria conspiratória é formulada para defender o seu inegável sucesso.

Tchecos não gostam de Kafka, tampouco de Rilke. Agora o que dizer sobre Kundera, genuínamente tcheco? Aí o problema é mais delicado ainda. Kundera é visto como um traidor de sua pátria, já que ele fugiu para a França durante a invasão comunista e nunca mais voltou. Além disto, já há muitos anos ele deixou de escrever na sua língua materna para escrever em francês. E se há algo pior do que um alemão, esse algo é francês!

Mas deixemos de lado este besteirol nacionalista. É um fato que a juventude lê pouco, e lê normalmente coisas ruins. Isto explica porque eu não consegui encontrar um livro de T.S.Eliot nas livrarias aqui de Praga, mas encontrei todos os do Paulo Coelho traduzidos para o tcheco! Os jovens europeus sentem saudade de uma geração que não viveram, e se prendem aos escritores da Geração Beat e a todos os malditos do século passado, além dos novos escritores pop. Seu julgamento é o contrário do meu: se um livro foi escrito há mais de sessenta anos então ele deve ser ruim, ou chato, pensam. Eu nada tenho contra escritores contemporâneos, e inclusive gosto de muitos, mas confesso que minha preferência recai sobre os antigos. Penso que o julgamento do tempo serve como um filtro. Se houve tanta coisa ruim produzida na época vitoriana, ela acabou sendo perdida, ao contrário de Shakespeare. E antes que me acusem de julgar sem conhecer, eu digo que já li praticamente a obra completa de Bukowski e Borroughs, e já fui um grande aficcionado por estes escritores. Enfim, estou me desviando do assunto, mas este era um desabafo necessário. Esta foi uma das frustrações que eu tive em Praga. Praticamente todos lêem, mas eu não encontro uma alma penada para conversar sobre os livros do meu interesse.

Franz Kafka (1883-1924)

Mas voltemos aos três nomes que entitulam esta coluna de hoje. Franz Kafka nasceu em Praga no final do século XIX no seio de uma família alemã judaica. Os alemães eram uma grande minoria, contando com algumas centenas de família vivendo nesta cidade, mas tinham todo o poder cultural concentrado em suas mãos. Eu nunca li nenhuma biografia deste escritor, mas muitos já me disseram que Kafka odiava Praga. Ele se sentia como um estrangeiro em sua própria terra natal, e se juntarmos este fato à sua depressão e sua fobia social, podemos tentar compreender o que se passava. Quem não conhece a obra de Kafka não pode ter idéia de sua importância para a literatura mundial, e os que a conhecem semprem sentem um calafrio ao se lembrar de seu último pedido feito ao seu amigo Max Brod: "Querido Max, meu último desejo: Tudo eu deixo para trás… no caminho deixo diários, cartas, manuscritos, rascunhos que devem ser queimados sem serem lidos". Eu sinceramente não consigo compreender o que se passou com o escritor, apenas formulo hipóteses na minha mente. Seria isto uma satisfação plena com o seu trabalho, de forma que o ato de escrever era a parte relevante, e não a fama ou o reconhecimento? Seria esta realmente uma última mostra de força, uma punhalada no destino? Sabe, o criar não é controlável para o artista. Criar é algo doloroso, lapidar uma obra é exaustante. Estaria ele dizendo: "Me fizeste escrever, e eu escrevi. Agora eu bem posso decidir o que fazer com o meu legado."? Enfim, apenas especulo.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)

Rilke também fazia parte da pequena sociedade alemã que vivia em Praga. Foi educado na sua cidade natal e também em Munique, estudando filosofia, história da arte e literatura. Foi com certeza um dos maiores poetas do século passado. A época em que ele viveu não permitia um pensamento genuinamente otimista, com toda a desconstrução dos valores antigos começando e que iria culminar no pensamento da metade do século XX, mas mesmo assim eu ouso dizer que ele foi uma das almas mais otimistas de sua época. Seus poemas abordam a depressão e o sofrimento humano, é verdade, mas também abordam o amor de uma maneira tradicional. Há um livro fantástico sobre o pensamento de Rilke, entitulado "Cartas ao jovem poeta", que contém cerca de dez cartas integrais trocadas com um estudante de artes em meados da década de dez. Neste livro, Rilke expõe sua visão sincera sobre arte, religião, amor e outros grandes temas, e é incrível o seu pensamento. Rilke não negava a solidão, nem tentava diminuí-la, mas se satisfazia por sua grandeza e isto fazia parte de sua missão. É um pensamento semi-religioso, mas de uma beleza indescritível.

Milan Kundera (1926- )

Por último chegamos ao Milan Kundera. Bem, eu já queiro deixar claro que não sou um grande fã deste escritor pop. Kudera fazia parte de uma juventude ideológica e lutou durante muito tempo contra a invasão comunista. Em 1975, enfim, decidiu partir para a França, aonde reside até hoje. Há pouco tempo atrás houve um escândalo envolvendo seu nome sobre uma possível traição contra um amigo. De acordo com os jornais, Kundera teria denunciado seu colega, que passou quase duas décadas em um campo de trabalhos forçados. Isto me soou como mais uma das notícias especulativas que estão tão em moda aqui na Europa. Jornais italianos e espanhóis são movidos a picuinha, e nunca citam as fontes de suas notícias bombásticas. Sobre o estilo literário de Kundera, há algo que me desagrada. Kundera me soa, muitas vezes, como uma pessoa tentando se impor aos gritos, como com seus comentários machistas, e o seu excesso de citações me tira do sério. Há trinta e duas, eu disse trinta e duas, citações de uma mesma frase de Beethoven, ‘Es muss sein‘, no seu livro mais famoso, ‘A insustentável leveza do ser’. Este começa com uma discussão, logo no primeiro parágrafo, sobre a teoria do "Eterno Retorno" de Nietzsche, a teoria mais obscura do filósofo alemão. Kundera discursa sobre ela em alguns parágrafos, e reduz toda a teoria nietzscheana a uma conversa de vovó, que dura apenas um par de páginas. E, claro, soa profundo. Em outro trecho, ele coloca uma pequena pauta musical com o tema de um dos últimos quartetos de corda de Beethoven, após tê-lo citado de maneira escrita (ver imagem abaixo). Além disto, há um certo menosprezo por seu leitor. Ele escreve, escreve (e depois explica tin-tin por tin-tin novamente entre parênteses). A juventude tcheca não o julga mal por ter fugido de seu país, e seus livros encontram um considerável grupo de leitores aqui.

Existem outros grandes nomes da literatura tcheca, como Karel Čapek e Jaroslav Hašek. Eu ainda não tive a oportunidade de ler algum de seus livros, mas pretendo fazer isto em breve. Ambos são escritores muito respeitados internacionalmente, mas novamente não são os favoritos do povo tcheco (Hašek é realmente odiado por todos devido às suas sátiras da vida tcheca). Como dizia minha avó, "Casa de ferreiro, espeto de pau."

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Gilberto Agostinho