Da brutalidade dos fatos

Ou, de como as obras de Francis Bacon e Pablo Picasso desafiam as definições tradicionais sobre o que é belo e o que não é.

Paul Klee escreveu num de seus diários algo mais ou menos assim: uma arte que exclua o feio é como uma matemática que descarte o uso dos números negativos. É falsa.
A discussão sobre que é belo é tão velha quanto a própria arte. Mas a concepção de que somente o que é “pitoresco” deva ser eternizado numa obra de arte é relativamente recente. Ainda assim, muita gente acredita que somente aquilo o que consideramos “belo” (e belo, aqui, quase que significando apenas atraente) é digno de ser transformado numa pintura, numa escultura ou numa fotografia; tudo o mais está descartado por ser naturalmente “feio” e, portanto, desagradável, indigno e descartável.
Este preâmbulo serve para tratar da relação entre a obra de dois artistas: Francis Bacon e Pablo Picasso.
No livro de David Sylvester com as entrevistas que teve com Francis Bacon há uma afirmação do pintor sobre o porquê prefere Picasso à Matisse:

Eu nunca senti essa grande admiração que as pessoas têm por Matisse; sempre achei que ele era lírico e decorativo demais. (…) Porque Matisse jamais – como é que posso dizer… – jamais teve a brutalidade do fato que tem Picasso. Acho que ele nunca teve a inventividade de Picasso e acho que transformava o fato em lirismo. Ele não tem a brutalidade do fato que existe em Picasso.

Bacon refere-se especificamente ao período do final dos anos 20s e início dos anos 30s, quando Picasso flertou com o surrealismo. Como o próprio Bacon, também considero essa a fase mais interessante de Picasso. E o que torna suas pinturas do período tão intensas é exatamente o que Bacon chamou de a brutalidade do fato: são imagens cruas, que parecem ter saído do subconsciente de Picasso diretamente para a tela, sem nenhuma mediação racional.
Não há primor de técnica, exuberância de formas ou de cores, nada disso. Apenas figuras, formas vagamente humanas, completamente distorcidas, na praia. São inesquecíveis por brutais. E não só o Picasso desse período é brutal: suas grandes obras, de qualquer fase, são imagens terríveis, formas selvagens e agressivas. Não creio que alguém admire Les Demoiselles d’Avignon ou Guernica por considerá-las “belas” pinturas. São pinturas brutas, e sua força reside nisso.
É possível perceber a influência dessa fase de Picasso nos primeiros trabalhos de Bacon. E mesmo depois, quando Bacon já havia definido sua forma de pintar, nota-se que a distorção de suas figuras é o resultado da sua luta para que o fato revele-se da maneira mais direta possível. Não é a distorção dos expressionistas, que, quando comparados com Bacon, parecem românticos ao distorcer a forma para melhor exprimir suas sensações e sentimentos. Chega a ser o oposto disso: Bacon distorce as figuras para que elas se revelem mais verdadeiras do que seu aspecto natural, e não porque deseje exprimir alguma coisa:

Há padrões estabelecidos para o que a aparência é ou deveria ser, mas não resta dúvida de que os meios pelos quais a aparência possa ser reproduzida são procedimentos muito misteriosos, porque sabemos que algumas pinceladas ao acaso podem fazer surgir subitamente a aparência com uma clareza que nenhum meio tradicional seria capaz de produzir. Estou sempre tentando, através da sorte ou do acaso, encontrar um meio pelo qual a aparência possa estar ali, mas reconstituída a partir de outras formas.

Bacon, aliás, é o primeiro a afirmar que não tem a menor idéia do que os seus quadros significam (se é que significam alguma coisa). Ele tenta reconstituir e revelar o fato, em toda a sua crueza, mas exime-se de interpretá-lo. Nisso também ele se aproxima de Picasso e sua famosa afirmação: eu não procuro, eu acho.
Bacon e Picasso buscam mais do que a aparência das coisas, buscam mais do que criar belas e pitorescas imagens. Eles buscam a brutalidade dos fatos.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.