Ronda Noturna By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Ou, do mistério e do fascínio da atmosfera na obra de arte. “Nenhum homem sabe quem é”, é o que afirma Léon Bloy. E aparentemente Mallarmé postula que “nomear um objeto é suprimir três quartas partes do prazer do poema, que reside na felicidade de ir adivinhando; o sonho é sugeri-lo”. Leio ambas as citações em Borges, que refuta a deselegante inclusão das “três quartas partes” na frase de Mallarmé, mas aceita a idéia geral. Inicio este artigo com essas duas citações para uma defesa da atmosfera na obra de arte. Consigo relevar qualquer coisa num trabalho se o autor foi feliz ao criar uma certa atmosfera, e isso vale na pintura, numa instalação ou performance, num livro, na música. Tudo o mais pode ser meio capenga, mas, caso o sujeito tenha conseguido “criar um clima”, acho que seu trabalho merece alguma atenção. Na pintura, mente-se o tempo todo para revelar algum fragmento de verdade. Uma superfície plana, coberta com camadas de cores em certa ordem que, durante séculos, pretendeu ser uma realidade tridimensional, uma janela por onde se entraria num universo coerente e homogêneo análogo à realidade, é uma mentira do começo ao fim. Uma pintura hiper-realista mente, uma pintura abstrata mente. A mentira é um ato de criação, e para que seja convincente, ela precisa de uma ambientação que a torne mais crível. É isso o que chamo de atmosfera. Tome-se um De Chirico como exemplo: Mistério e Melancolia de uma Rua, de 1914. Nos seus melhores momentos, De Chirico é mestre em criar atmosferas inquietantes que confirmam o dito de Mallarmé citado acima. Os objetos tratados por ele guardam a estranha dualidade de serem ao mesmo tempo usuais e perturbadores. Tem a característica de parecerem comuns e cotidianos, mas quanto mais olhamos para esses objetos (e suas relações), mais inquietantes eles parecem. Vão deixando de ser aquilo o que representam, ou o que representariam normalmente, e tornam-se signos que não conseguimos decifrar. O resultado é certa angústia de pesadelo, de sonho ruim que nos faz querer acordar: o que é aquela arcada que quer estender-se até o infinito? E a arcada que está nas sombras, em outra perspectiva, que desmente o edifício da esquerda, por que isso? Em direção a quê esta menina corre? Àquela sombra ameaçadora, talvez de uma estátua? A sensação é a de uma tarde solitária e quieta, prestes a ser quebrada por algum acontecimento nefasto. Isso é atmosfera. É a sugestão em lugar do explícito, é o espaço que se dá ao observador para que ele construa uma poética que lhe é particular. E é o lugar onde as coisas não tem nome, e como não nomeamos, não conhecemos. Por isso a citação inicial de Léon Bloy. Não conhecer é inquietante porque, no fundo, nós não conhecemos a coisa primeira, e não conhecendo nem ao menos quem somos, o que mais poderemos esperar conhecer do universo que nos cerca?