Ronda Noturna By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet A pintura só existe no presente. Este é um fato mais ou menos consciente desde Cézanne, pelo menos. Não porque ela trate de questões que lhe são contemporâneas, mas porque tanto o ato de pintar como o de observar uma pintura se dão unicamente no presente. Cézanne escreveu numa de suas cartas que se pensasse enquanto pintava “estava frito”. Pintar é coisa de animal: vive-se apenas no presente. O passado e o futuro não existem no ato de pintar. Na verdade, a pintura é uma negação da realidade do passado e do futuro. Busco auxílio em Schopenhauer: “A forma de aparecimento da vontade é só o presente, não o passado nem o futuro: estes só existem para o conceito e para o encadeamento da consciência, submetida ao princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro; o presente é a forma de toda vida”. A pintura fornece as condições para o aparecimento da vontade como descreve Schopenhauer. Quantas vezes não me vi assombrado diante daquele Bellini do Masp, sem saber exatamente o motivo do meu assombro. Só muito recentemente descobri o porquê: aquela Madona segurando o menino Jesus está num perpétuo presente. Por algum motivo que é misterioso para mim, é o fundo que garante que a pintura estará sempre no momento presente, e não no século XV, muito menos na época de Jesus. Aquela pintura está ali hoje; por meio de alguma magia que não compreendo, ela traz para 2009 um instante (imaginado, ainda por cima) do século XV. Eis um dos fatores que distinguem uma obra perene de um trabalho acadêmico que emula as características dos grandes mestres. E, fiquemos atentos, há um movimento forte hoje, talvez espelhando a era de trevas que se iniciou com o Sr. Ronald Reagan e que alguns ingênuos acreditam que o Obama irá sepultar, que quer revisar a história da arte e colocar em pé de igualdade os mestres do Renascimento e artistas como Bouguereau, Cabanel e outras desgraceiras. Aliás, é bom citar um artista como Bouguereau neste contexto. Sua obra está em qualquer lugar, menos no presente. E não porque ele trate de ninfas, sátiros, alegorias e temas históricos. Mas porque nela não há em momento algum essa inserção da pintura no presente; ela está em algum outro lugar, parece não querer dialogar com a vida, sua única função parece ser a de estar pendurada numa parede de uma mansão burguesa, para orgulho do seu dono. Tudo o mais está descartado, da mesma forma como se fecha os olhos para o que é “feio” ou se tapa o nariz para o que cheira mal, mesmo que a coisa feia e a coisa malcheirosa façam parte da vida cotidiana. Acrescente-se a isso o excesso de erudição gratuita, a necessidade de exibir a técnica, a ansiedade em agradar a sua clientela, e temos uma pintura definitivamente morta. Confesso não saber exatamente, além do que já disse, o que se passa com a obra dos acadêmicos do século XIX que faz seu trabalho tão medíocre e tão distante da tradição da qual eles se pretendem seguidores. Mas tenho um palpite: é uma pintura essencialmente escapista, análoga a literatura de um Tolkien, e tão ruim quanto. É esse eterno estar no presente que une obras de tempos diferentes, de locais diferentes e contextos diferentes. E isso é, antes de tudo, um convite à vida. Termino com Marco Aurélio (Reflexões, 14): “O presente é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém perde o passado, nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que não tem.”