O fetiche do dinheiro

dolar

O maior dos fetiches é o do pedaço de papel colorido, com cerca de 13 por 6 centímetros, com uma efígie e um número estampados. Jamais o vemos dessa forma, que assim descrita pode até parecer com um santinho de candidato a vereador ou deputado. Nunca haverá confusão entre uma cédula de dinheiro e um santinho, entretanto. Não veremos o chão coberto de cédulas de 50 reais até formar um tapete espesso que dificulta a locomoção, como acontece nos dias de festa da democracia — para utilizar o termo caro à Rede Globo.

Arregalamos os olhos diante da imagem das malas de dinheiro de Geddel Vieira. Fossem malas recheadas com folhetinhos de viagem, não ficaríamos minimamente interessados. É o fetiche do dinheiro que exerce seu feitiço. Vemos aquilo e ficamos pasmos. Podemos imaginar Geddelzinho a espalhar as notas pelo chão e mergulhando nelas, feito um Tio Patinhas baiano.

O fetiche é algo que substitui algo usualmente inefável, irrepresentável, inexprimível. Falamos de fetiche e lembramos de religião e sexo. O indivíduo mais politizado lembrará de economia: o fetiche da mercadoria.

Publicitários conhecem e manipulam os signos do fetiche. Encharcam quaisquer produtos de felicidade, alegria, energia, juventude, glamour, exclusividade, modernidade. Fazem o fetiche cutucar a cobiça e a inveja. Seu trabalho é ingrato, às vezes. Observe-se a dificuldade de se vender a imagem e a ideia de um banco. Mostra-se a moça independente na praia, acessando o site do banco no seu tablet, finalizando uma operação financeira com a maior facilidade. Mostra-se o senhor idoso, confortável em sua casa, realizando outra operação financeira, dessa vez utilizando-se do notebook, com igual facilidade, e assim que termina, seus netinhos pulam no sofá para brincarem com o vovô. A moça na praia, o vovô e seus netinhos, sempre felizes, sempre sorridentes, sempre tranquilos. Só não se trata daquilo que é a razão de ser do banco: o dinheiro. Guardar o dinheiro, preservar o dinheiro, aumentar o dinheiro, especular com o dinheiro. É tabu. Mostra-se a vida que o dinheiro pode comprar. Mas a moeda sonante é uma notável ausente. Cria-se um mundo para não se tratar diretamente dele, o dinheiro. É necessária a fantasia para esconder Mamon.

O curioso com relação ao dinheiro é que, ao utilizá-lo, nós o fazemos sem o auxílio de fantasias ou disfarces. Aí, ele é o que é: um veículo, um meio de se obter, e de exercer, Poder; um nó de relações sociais, no jargão marxista. Deixamos de lado o fascínio que ele cumpre sobre nós e vamos direto ao ponto: compro isto por tanto; se puder, pago menos. Num caso raro, vemos por debaixo das aparências. No seu uso, não há fantasia. Quando apenas em potência, no entanto, uma abstração que nos deleita como nada no mundo. Ainda que seja apenas o veículo para o (suposto) verdadeiro deleite.

Mas, suponho, o verdadeiro deleite não existe. Ou, caso exista, não será deleite: será pesadelo.  Acho que foi Nietzsche que definiu o Poder como a sensação de que todo obstáculo foi vencido. A ideia maior por trás do dinheiro, por trás do pedaço de papel de 13 por 6 centímetros é a de que, em quantidade suficiente, ele conquistará todo e qualquer obstáculo. Noutras palavras: realizado, é a Corrupção absoluta. É a inumanidade total. Gozar com o meio de transporte no lugar de gozar com a coisa em si que não existe é uma boa fórmula para definir o fetiche.

Mais acima, falei de fetiche da mercadoria, um conceito marxista. Marx escreve, em O Capital: À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas.

O fetiche, o substituto simbólico, reúne sob a mesma aba religião, sexo e dinheiro. Não à toa, padres e pastores evangélicos lidam intestinalmente com os três tópicos: irmanam-se na religião, demonizam o sexo e amam, acima de tudo, o dinheiro.

O fetiche, que é o outro nome que não o nome real das coisas, nos justifica.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.