Nem tudo se perde nem tudo se transforma

 

 

Lixo se tornou a alegoria da sociedade moderna, símbolo da desintegração, uma lembrança traumática, um novo motivo para discussões, a herança moderna para as novas gerações. O lixo está para a construção como desconstrução, matéria e decomposição, transformação.

 

O lixo se tornou a alegoria da sociedade moderna, símbolo da desintegração, uma lembrança traumática, um novo motivo para discussões, a herança moderna para as novas gerações. Classificado em diferentes categorias, orgânico, inorgânico, atômico, indutrial, espacial, doméstico o lixo está para a construção como desconstrução, matéria e decomposição, transformação.

O consumo como doença ou, a doença do consumo

Não muito longe no tempo, nos anos 70, a tese postulada por Pier Paolo Pasolini, escritor, poeta e político, definia o consumismo como uma nova forma de totalitarismo. A ideologia do consumo como conseqüência a destruição das diferentes formas de convívio social e cultural está transformando a sociedade numa cultura uniforme de massa.

A “obrigação” de consumir se traduz como uma forma de “sensação de liberdade”, uma forma de compensar o sentimento de vazio causado por uma depressão crônica. A tese de Pasoline nos faz refletir sobre os nossos hábitos e na utilização dos nossos, já limitados, recursos. Novas formas de consumo e entretenimento, com as estações de esqui artificiais em Dubai, num deserto de 45 graus, que esbanjam enorme quantidade de energia, para que poucos escorreguem na neve artificial branca e fria. A lista dos absurdos pode ser longa como a viagem que fazem os camarões pescados no mar do norte da Europa. Eles viajam em caminhões para o… norte da África, Marrocos e lá são descascados, pois a mão-de-obra africana é mais barata, de lá, os camarões, agora limpos, voltam para os pratos dos consumidores na Alemanha. Uma viagem de muittos mil quilômetros, para cima e para baixo, queimando óleo diesel, aqui uma constatação: é a doença do consumo.

 

Indo além o conceito de “sociedade do desperdício” foi dado pela primeira vez pelo economista americano John Kenneth Galbraith, está relacionado à crítica da sociedade de consumo. A superprodução de bens, riquezas e serviços resultam em abundância e conseqüentemente no desperdício. Aqui a palavra desperdício deve ser compreendida como esbanjamento, extravagância. Mas o que chamamos de “desperdício”, na vida moderna, não é um fenômeno novo. As sociedades antigas também esbajaram produziram os seus “restos”, todos de natureza orgânica que facilmente se decompunham. Para a arqueologia a pedra, a madeira, o couro, ossos são testemunhas de nossa existência, num passado longínquo, acerca de 400.000 anos, o Homo herectus ocupou a face da terra provando que ele podia modificar a natureza. Graças aos restos deixados por eles podemos estudar seu modo de vida, e hoje reconstruir o modo de vida dos nossos ancestrais.

 

Até a revolução industrial o que era jogado fora se transformava em humus, retornava ao ciclo natural da vida, então o homem moderno inventou o plástico e outras quinquilharias indestrutíveis sem pensar nas conseqüências dos seus “restos”. Um caso exemplar é o da cidade de Nápoles que foi salva no último minuto antes de ser sufocada pelo que consumiu e esbanjou: o lixo.

 

No entanto, antes de Nápoles respirar o ar fétido vindo do lixo acumulado nas ruas, Roma já tinha sofrido dos mesmos problemas no século VI antes de Cristo, a cidade fedia bestialmente, mergulhada em seus próprios dejetos. Para resolver o problema foi construída a “Cloaca Máxima”, no mesmo período que foi edificado o Coliseu. Claro que este deu mais ibope na história, já o encanamento do esgoto…

 

Voltando a Nápoles, nos seus 2000 anos de existência, a cidade escreveu história.Tombado pela Unesco como patrimônio Histórico da Humanidade, tornou-se um caso de intervenção militar, quando toneladas de lixo acumulados nas ruas viraram manchete de jornal no mundo inteiro. Escolas foram fechadas, cidadãos indignados viam montanhas de lixo crescer nas ruas e a solução encontrada foi exportá-la para a… Alemanha. Minha gente, acredite, até dezembro chegarão 46 vagões diários, cerca de 600 toneladas de lixo napolitano, que serão queimados aquí, gerando eletricidade suficiente suprir o consumo de 100.000 pessoas por um ano.

 

Os ambientalistas estão trincando os dentes e vêem “os negócios do lixo” italiano com muitas críticas. Aqui novamente os absurdos da modernidade: o lixo como mercadoria de “exportação” viaja pela Europa de lá para cá e de cá para lá. E os custos disto tudo? Para o ministério do meio ambiente “O lixo tem que ser reciclado onde há retorno financeiro”. O Estado da Renânia do Norte é considerado o “lixão” da Europa, importa cerca de1, 8 milhões de toneladas de lixo de outros países para queimar.

Mas há também o lixo “tipo exportação”, claro. Apesar de ser ilegal a Europa exportar lixo considerado perigoso, em setembro de 2006, desembarcou na Costa do Marfim, na África, onde foi depositado, sob a responsabilidade de uma firma holandesa, restos de óleos extremamente venenosos, vindos da Estônia. Os resultados desta política: envenenamento e morte. Nos hospitais da cidade de Adisabeba mais de 10 mil pessoas foram atendidas com algum grau de envenenamento.

 

Apesar do controle, há aqueles que escolhem o caminho ilegal para dar fim ao lixo tóxico e depositam-no nos países pobres da África. Das cerca de mais de 300 mil toneladas de lixo perigoso, aproximadamente 10% é exportada ilegalmente. E o que chamam de “eletrolixo”, isto é, sucata de computadores, também é exportada para países pobres da África, Ásia e América Latina para serem “reciclados”. A saúde daqueles que manipulam estes produtos é colocada em risco.

 

Alemanha, a exceção e a regra

 

Para se ter a idéia do tamanho do esbanjamento dos nossos recursos, basta olhar para a quantidade de lixo que cada cidadão produz. A medalha de ouro fica com os americanos, com 50 toneladas de lixo por pessoa por ano! Para se comparar, cada cidadão alemão produz 23 toneladas, isto é menos da metade dos americanos.

Segundo as estatísticas do World Waste Report de 2006 o mundo produz diariamente 130 milhões de toneladas de lixo. 80 mil substâncias químicas, dentre elas metal pesado, como cadmio envenenam a água, o ar e caem na cadeia alimentar de animais e seres humanos, provocando envenenamento e doenças crônicas. É o apocalipse!

Uma gota de boa notícia num oceano de más: a Alemanha desde o ano 2000 vem produzindo cada vez menos lixo. Das 341 milhões de toneladas, 205, isto é 65% é reciclado. No caso de metal, o reaproveitamento chega a 97% e material plástico 84%, o que é uma exceção no mundo do consumo, mas tudo isto se deu graças à conscientização dos cidadãos.

 

Ah, estava me esquecendo da China. Eles entraram agora, agorinha mesmo do mundo olímpico de quem suja mais. Ninguém segura a China. Já arrebataram muitos ouros, em casa, nas Olimpíadas e estarão em breve ultrapassando os americanos em matéria do lixo por cabeça. Lá são mais de um bilhão de almas, não esqueçamos, todos querendo ter o padrão de vida do primeiro mundo: carros, geladeiras, eletrodomésticos, etc. Porque não? Porque sim? Para se pensar, na China a cada mês uma usina de carvão em entra funcionamento para produzir energia. E as emissões de CO2, oh?

Um lixo! Um luxo!

O lixo que alimenta

 

Na Alemanha há gente que vive do lixo. Pobreza? Não e sim. Muitos dos que vivem do lixo o fazem por opção, em sua maioria são estudantes ou gente que tenta viver uma “vida alternativa”, cansados do consumismo exagerado, se indignam. Convencidos de que não é possível viver numa sociedade como a alemã e ver alimentos serem jogados fora, enquanto em outros paises há pessoas vivendo com fome e na miséria, estes cidadãos partem para a ação concreta.

 

O método adotado por eles é muito simples: uma bicicleta e uma mochila. Eles fazem uma “ronda noturna” nos pátios das grandes redes de supermercados e enchem a mochila. Os produtos recolhidos são aqueles cujas datas de validade estão vencidas ou para vencer. Muitos supermercados tentam evitar a “coleta” espalhando sabão sobre produtos para torná-los impróprios ao consumo, mas em outros supermercados os funcionários deixam separados produtos que poderiam ser ainda aproveitados. Muitos produtos são literalmente “luxuosos” para aqueles que não podem pagar, como por exemplo, os caríssimos produtos biológicos, como leite, frutas, verduras , que ironia do destino, são os primeiros a serem retirados das prateleiras, considerados caros pelos consumidores, são os primeiros a ter sua data de validade vencida e vão para os contêineres.

 

Se vocês quiserem ver o que eles conseguem recolher nas suas “rondas noturnas” pelos supermercados d`Este País-Alemanha, dêem uma olhadinha lá no blog Conteiner. Ele está em alemão, mas as fotos traduzem as palavras. É surpreendente o que eles conseguem recolher em uma ronda noturna.

Outra forma de coleta, esta oficial, do que seria considerado “lixo” é feita pela Tafel, uma associação de ajuda no recolhimento e distribuição de alimentos ainda próprios para o consumo. Os 1700 voluntários recolhem os produtos dos supermercados, padarias, açougues que serão redistribuídos nas 780 centrais da Tafel em toda Alemanha. Segundo as estatísticas de 2008 foram distribuídos regularmente 3,4 kg em média de alimentos para 700 mil pessoas. A clientela que se serve da Tafel é diversa: gente que vive da ajuda social do governo, moradores de rua, aposentados pobres, pessoas idosas, famílias de desempregados e ou com muitas crianças. A Tafel é a maior organização voluntária da Alemanha, com um total de 32 mil pessoas engajadas no trabalho, sobrevivem de contribuições voluntárias não têm nenhuma ajuda governamental. Em sua fundação em 1994, eram somente 4 estabelecimentos e nas estatísticas de 2008, em 14 anos, saltaram para 785! No meu artigo “Pobre rica Alemanha” fica claro o porquê de tanta gente recorrer as

Tafels.

 

Lixo se tornou a alegoria da sociedade moderna, símbolo da desintegração, uma lembrança traumática, um novo motivo para discussões, a herança moderna. Lixo está para a construção como desconstrução, matéria e decomposição, transformação.

Os artistas plásticos que nos venham salvar desse pesadelo moderno, transformando o lixo em arte. A poesia e a arte nos forçam a debruçar sobre a memória cultural. Do trasch ao cult, do lixo ao luxo. Menos poético, aqui na Alemanha os 100 mil metros cúbicos de lixo radioativo, produzidos nos últimos 40 anos, ocuparão por 50 mil anos a mente das próximas gerações, como parte da herança deixada pela sociedade do consumo. Nem tudo se perde nem tudo se transforma.

Para aqueles que nunca assistiram, o filme Ilha das Flores de Jorge Furtado é para ver e pensar.

 

 

Fotos: Solange Ayres

Fonte:

Alle Kultur nach Auschwitz ist Müll – Zerrformen des kulterellen Gedächnisses

Das Müll-System Volker Grassmuch & Christian Unverzagt

Lizzy- Essen aus dem Müll

Nabu

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Solange Ayres