Loganálise By César Ebraico / Share 0 Tweet A ÚLTIMA parte da série "Alta em Psicanálise". IV. A “Pororoca” Antropológica: Vamos repassar o que foi dito de essencial até aqui. O essencial da primeira postagem desta série sobre a alta em Psicanálise foi assinalar que (1) a partir de certo ponto do pensamento ocidental (na verdade, a partir do momento em que Atenas perdeu para Esparta a guerra do Peloponeso), o termo “patologia” – construído a partir dos termos gregos “pathos” (= emoção) e “logos” (= estudo, tratado) – em vez de ser entendido como “estudo das emoções”, passou a ser entendido como “estudo das doenças”, veiculando sub-repticiamente a enganosa premissa de que “emoção” = “doença”; e que (2) no século XIX, Freud, na esteira de Nietzsche, desenvolveu um ramo da Psicologia, a Psicanálise, que veio contestar essa premissa. Na segunda postagem, indicamos que o ser humano funciona basicamente segundo dois grandes modi operandi: o “modo sobrevivência” e o “modo bem-estar”: o primeiro, entre outras coisas, restringe o contato do sujeito com suas próprias emoções (= “pathe”), sendo adequado para situações em que há alto nível de ameaça à vida; o segundo dá ampla acolhida àquelas e se adeqúa a situações em que tal ameaça é pouca ou nula. Assinalamos também que ambos os modi operandi são legítimos e que um psiquismo saudável deve ser capaz de empregar ambos, adequando-os às condições reais em que o sujeito se encontra. Pois bem, consideremos o seguinte: Após DUZENTOS MIL anos sobre a Terra, no fim do século XVIII, o homo sapiens, nos países mais desenvolvidos, chegou a uma expectativa média de vida de TRINTA E CINCO anos e a humanidade a contar com uma população de UM BILHÃO de almas. Então, subitamente, durante o que chamo de os Grandes Duzentos – os duzentos anos que medeiam entre duas datas de extrema carga simbólica: 1789, a queda da Bastilha e 1989, a queda do Muro de Berlim – aquela expectativa de vida mais que DUPLICA, ultrapassa os SETENTA anos e a população se SEXTUPLICA, chegando a SEIS BILHÕES de almas. Essa redução vertiginosa da ameaça concreta à vida (não da ameaça potencial, é claro, mas a maioria esmagadora dos seres humanos prima pelo imediatismo de seu comportamento) criou uma verdadeira “pororoca antropológica”, pois passou a pressionar uma humanidade viciada no modo sobrevivência – que restringe o acesso do sujeito às suas emoções – a comportar-se de acordo com o modo bem-estar – que faculta pleno acesso àquelas. V. Nietzsche, Freud e a Pororoca: No meio dessa pororoca, duas vozes se avultam, sinalizando a direção dos novos tempos: a de Friedrich Nietzsche e a de Sigmund Freud. O primeiro denunciou – e de forma tonitruante: dizia filosofar com um martelo! – a necessidade de acolher as emoções que o modo bem-estar reclama; o segundo desenvolveu uma técnica – que chamou de psicanalítica – para patrocinar de forma azeitada esse acolhimento. O objetivo de um tratamento psicanalítico, portanto, é implementar a proposta de Nietzsche: permitir que um psiquismo fixado no modo sobrevivência – que repele as emoções – seja capaz de operar também – mas, evidentemente, não apenas – no modo bem-estar – que as acolhe. Dito isso, meu leitor pode entender por que, no início desta série de artigos, transcrevi a modificação ocorrida em um sonho recorrente de meu paciente Renato, que vale a pena relembrar: “Sonhava que estava andando em um corredor … A certa altura, começava a escutar passos atrás de si. Apertava os seus. Atrás de si, os passos também se apertavam. Apertava-os mais um pouco. Os detrás dele também. Começava, então, a correr. Quem estava atrás dele começava a correr também. E a corrida de ambos se tornava desabalada, até que Ronaldo sentia um bafo quente em sua nuca e via uma mão peluda colocar-se sobre seu ombro direito… Acordava esbaforido, suando, com seus movimentos paralisados, querendo gritar um grito que teimava em não sair… No curso de sua análise, durante a qual o pesadelo várias vezes se repetiu, algo aconteceu. Sonhou que, mais uma vez, estava andando, no corredor. Mais uma vez, ouviu os passos atrás de si. Mais uma vez, apertou os seus passos, e os outros se apertaram também. Mais uma vez, começou sua desabalada carreira, quando pensou: – “Pô, estou com o saco cheio!” E, de imediato, virou-se no corredor, disposto a defrontar-se com seu perseguidor. E viu uma nuvem negra que começou a afastar-se dele, diminuindo sempre, até desaparecer no extremo do corredor. Nunca mais teve esse pesadelo!” Suponho que mesmo um leitor leigo há de entender que virar no corredor para defrontar-se com o fantasma que o perseguia é uma representação de que, na vida, Renato passara a enfrentar emoções das quais desde sempre estivera fugindo. Essa “virada” também foi representada em um sonho recorrente análogo, de outra paciente minha, Leonora, com uma diferença: ao virar para se defrontar com quem a perseguia deu de cara… com ela mesma! Mais claro impossível! Quando, em um tratamento psicanalítico, ocorre tal “virada” e um psiquismo que operava fugindo eternamente de si próprio, opta por defrontar-se consigo mesmo – o que, naturalmente, pode ser representado de outras maneiras, não só por sonhos – podemos respirar aliviados: esse tratamento foi bem sucedido. Isso implica “alta”? Não. Entramos agora em um período que pode ser chamado de “convalescença”, que, no que tange a Renato, descrevi da seguinte forma: A partir desse episódio, que ocorreu cerca de três anos após o início do tratamento, a melhora de Renato se acelerou fortemente: parou de passar seus dias dentro d’água, surfando, reabriu sua matricula na faculdade, voltou ao convívio de seus colegas, por fim, reatou com a namorada, formou-se, candidatou-se a uma pós-graduação fora do Brasil, foi aceito e, satisfeito com nosso trabalho, despediu-se de mim.” Esse período de “convalescença”, durou, no caso, cerca de 1 ano e meio, quando Renato decidiu que continuar nossa relação iria ter uma desfavorável relação custo-benefício, pois os ganhos a serem auferidos – e sempre os há – seriam pequenos frente ao prejuízo de ter que postergar seu sonho de, já graduado em Medicina, fazer uma pós-graduação fora daqui. O processo psicanalítico bem sucedido, em minha experiência, segue sempre esse modelo: (1) uma “virada” do tipo descrito, em que um psiquismo que teme defrontar-se consigo mesmo, passa a preferir fazê-lo; e (2) um período de “convalescença”, particularmente rico em dissolução de sintomas, que é terminado por iniciativa do paciente, quando ele decide que os custos de continuar a análise são maiores do que os benefícios de nela permanecer. O término de uma análise, antes que essa “virada” ocorra, indica seu fracasso; o término de uma análise, depois disso, seja o quanto ela for avante, indica que houve sucesso, porque, após tal “virada”, a convalescença é certa, podendo, apenas, ser mais ou menos rápida e abrangente, conforme ocorra, respectivamente, dentro ou fora das quatro paredes de um consultório. E, como a busca da saúde mental pode ser representada por uma assíntota – tipo de curva que, inicialmente, se aproxima vertiginosamente de uma reta, para, aos poucos, aproximar-se mais e mais lentamente, só se encontrando com ela no infinito – talvez fosse mais apropriado, quando um paciente resolver terminar uma análise bem sucedida, em vez de dizer que ele se deu “alta”, afirmar que se deu “baixa”…