Praguejando By Gilberto Agostinho / Share 0 Tweet Em 1583, o Rei da Boêmia Rodolfo II decidiu mudar a capital da dinastia dos Habsburg, a qual ele pertencia, para Praga. Ele fez desta cidade um verdadeiro centro intelectual, e pertenciam a sua corte vários artistas e cientistas. Rodolfo II foi criticado após o seu reinado por ter manifestado mais interesse pelas artes do que pela estabilidade do seu reino, mas é inegável o valor das obras artísticas e científicas produzidas durante o seu reinado. Relógio astronômico medieval localizado na Cidade Velha de Praga Quem quiser conferir o funcionamento dele, basta acessar este link: http://www.praguealacarte.com/orloj/orlojLoader.html Entre os astrônomos reais, encontrava-se Tycho Brahe, grande astrônomo dinamarquês. Tycho é ainda lembrado hoje em dia pelo seu talento observacional. Durante vários anos Tycho foi anotando dados referentes aos planetas de uma maneira precisa e minuciosa, mas guardava seus papéis a sete chaves. Foi então que Tycho enviou um convite a um jovem estudante de teologia e filosofia para se hospedar em seu observatório, nos arredores de Praga. O nome deste jovem era Johannes Kepler, brilhante astrônomo alemão. A princípio Kepler era somente um visitante, mas Tycho, ao notar o grande potencial de Kepler, convidou-o para ser seu assistente no observatório e, assim, ter acesso aos seus dados coletados. Kepler fez um estudo detalhado sobre estes dados, e a partir deles formulou suas três famosas leis, das quais a mais notável é, na minha opnião, a mais simples delas: os planetas se movimentam em órbitas elípticas e não circulares, como se pensava nesta época. Na verdade, somente alguns pensavam assim pois o sistema geocêntrico de Ptolomeu ainda estava em voga, e decidir entre este ou o sistema héliocêntrico de Copérnico era uma questão muito mais filosófico do que prática. A contribuição de Kepler, e também de outros como Galileu, coloca um fim ao sistema ptolomaico e uma nova era se inicia na astronomia. No entanto, existem alguns fatos curiosos envolvendo o pensamento de Kepler. Na sua época, a astronomia e a astrologia não eram tidas como áreas separadas, e fazia parte do trabalho de um astrônomo real aconselhar o rei sobre seu futuro. Kepler tinha uma visão religiosa a respeito do mundo, e esta visão se torna nítida quando se conhece a sua obra. Kepler acabou descobrindo as suas leis ao tentar provar as suas crenças (ironia análoga ao do grande astrônomo Charles Messier, cujo catálogo de galáxias e nebulosas é usado ainda hoje. Messier era um ‘caçador de cometas’, e ficava extremamente irritado com aquelas manchas no céu que não eram seus preciosos alvos, e por isso fez questão de catalogá-las para evitar futuras confusões). Kepler acreditava, a princípio, que figuras geométricas, concêntricas no Sol, poderiam determinar a distância dos planetas. Sua teoria se encontrava mais ou menos correta com os dados da sua época, mas partia de premissas completamente metafísicas. Ao saber o resultado esperado de algo, nós podemos partir de milhões de premissas incorretas e acabar chegando ao resultado correto (arte que os ‘fazedores de religiões’ dominam como ninguém). Além disto, existe outra curiosidade extremamente relevante que eu ouvi quando eu estudava Física em São Paulo. Uma das suas leis foi deduzida de maneira incorreta, e no meio da dedução houve dois erros. O incrível é que estes erros anularam um ao outro e com isto Kepler chegou ao resultado que consideramos verdadeiro hoje em dia! Modelo das figuras concêntricas proposto por Kepler Eu gostaria muito de frisar o ‘hoje em dia’ da frase anterior. As pessoas tendem a ver a ciência como algo absoluto, como uma explicação inquestionável do Universo, mas eu acho que esta é uma postura extremamente arrogante, e também simplista. O que um dia foi considerado como verdadeiro pelos intelectuais de uma época pode ser, com o tempo, desenvolvido, revisto ou até mesmo negado. O sistema de Ptolomeu, no qual a Terra é o centro do Universo, é extremamente belo e complexo, mais complexo do que o sistema heliocêntrico. Me parece que é uma característica imutável do ser humano acreditar que ele é um fim, e não um meio. É muito fácil esquecer que todas as nossas teorias físicas são resultados de modelos, e estes modelos são frutos de uma mente humana. Estes modelos são também artísticos, no sentido em que a criatividade tem um papel extremamente importante, e portanto são meras idealizações da natureza, alguns mais próximos do observável do que outros, e tão somente isto. Não existem maçãs caindo nas cabeças de Newtons, fazendo com que eles enxerguem a verdade absoluta e universal do mundo, assim como Mozarts não acordam pela manhã e, durante seus cafés, concebem toda uma sinfonia. As obras artísticas e científicas são legados da humanidade, e devem ser enxergadas sob o ponto de vista humanístico. Renegar o ser humano e acreditar não em uma lógica à nossa volta, mas sim que temos acesso irrestrito a esta lógica, é tão absurdo quanto uma defesa apaixonada pelo Deus cristão. Peço desculpas a todos por este texto não ser o mais fluido que eu já escrevi e por sua leitura não ser das mais fáceis, mas a culpa sinceramente não é minha. O culpado tem nome, e se chama Marcos Schmidt, que também escreve aqui no OPS!, no Ronda Noturna, e a quem este texto é dedicado.