Um tema e duas abordagens

O tema é o mesmo: Saturno devorando um de seus filhos. Mas o tratamento dispensado por Rubens e Goya é totalmente distinto, e talvez revele algo da personalidade de cada um.

Grosseiramente: temendo que um deles acabe por tomar o seu lugar, o que de fato ocorre, Saturno, ou Cronos, põe-se a comer cada um de seus filhos. É um tema horrendo para uma pintura, para apreciadores com estômago forte.

Rubens trata do assunto à sua maneira: faz teatro. Ainda que conceda um pouco à violência explícita, e cause choque com a imagem do velho mordendo a pele do bebê, que além de tudo é seu filho, Rubens calcula exatamente a medida do impacto, para não o produzir grande demais, e ao mesmo tempo distancia o observador da crueza do tema através do tratamento grandiloquente e melodramático. O gestual do bebê é convencional, bem como é convencional a figura de Saturno, grandioso, ainda que lúgubre. Claro que se trata de um “convencional” de Rubens, e isso não é pouca coisa. Pintor fabuloso, de fatura inigualável e com um pendor para a composição complicada. Um homem bonito, segundo os relatos de contemporâneos, culto, muitíssimo bem relacionado (era algo como um diplomata, além de pintor), disciplinado e organizado. Seu ateliê mais se parecia com uma fábrica. Era um homem do mundo. O porém, no que diz respeito à sua pintura, além da teatralidade, grandiloquência e melodrama já citados, é que, uma vez decifrada a complicação composicional, ela fica esvaziada. Ficamos impactados com a primeira impressão, com o desenho seguro e as cores vibrantes, e tentamos decifrar as linhas e formas entrelaçadas, tortuosas, complexas. E quando conseguimos, dizemos: Ah, são uns caras caçando uns leões… E parece não haver mais nada a decifrar.

Goya inspirou-se na pintura de Rubens. Mas o tratamento é muito diferente. Saturno parece sair de dentro das trevas, parece ser feito da escuridão que o envolve. Segura o corpo de um adulto, ensanguentado, sem a cabeça. Os olhos estão arregalados, as mãos apertam o corpo com força que percebemos desmedida. Ele é a loucura enlouquecida, roubando a definição que Herman Melville usa para o capitão Ahab, em Moby Dick. Saturno é insano, é senil. Habita um universo anterior à criação do mundo. Cor, apenas a do sangue que escorre pelo corpo do filho já descaracterizado. Parece-me que, ao acabar seu ato funesto, ele irá retornar à treva, e tudo voltará a ser escuridão.

Goya, que era o pintor real da corte espanhola, fez essa pintura para si mesmo, na parede da chamada Quinta del Sordo. Ali ficavam as Pinturas Negras, uma série de pinturas que, se não tinham uma relação coerente nem clara entre si, formavam um conjunto de imagens em tons menores, decididamente saturnianas. Goya estava num estágio já avançado de surdez, que tentou, durante um bom tempo, esconder de todos. O rei, Fernando VII, não gostava de Goya e nem Goya gostava de Fernando VII. No que, aliás, era acompanhado por muitos espanhóis. O pintor tornou-se um homem taciturno, atormentado pelos demônios pessoais e pelas atrocidades cometidas pelo exército invasor de Napoleão. Retraiu-se.

O Saturno de Rubens é uma obra brilhante. Rubens é brilhante.

O Saturno de Goya é terrível. Goya é maior.

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Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.