Por uma “Lei Cleber”…

O educador português José Pacheco expõe seu posicionamento quanto à questão do Caso Cléber: a família que foi julgada e condenada por educar os filhos em casa. Em entrevista telefônica concedida à Folha de São Paulo, o professor teve sua opinião sumariamente pervertida e o texto com sua opinião completa NÃO FOI PUBLICADO. Leia na íntegra o texto aqui:

O Cleber retirou os seus filhos da escola, educou-os com esmero e foi condenado por “abandono intelectual”. Lei é lei, foi aplicada e não pretendo questionar a sentença, embora lamente que a jurisprudência não possa ser harmonizada com a pedagogia, com evidências e com o bom senso.

O Direito à educação é parte de um conjunto de direitos sociais, que têm como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas. Em 1988, as responsabilidades do Estado foram repensadas e promover a educação fundamental passou a ser seu dever. O artigo 205 da Constituição consagra o direito da pessoa ao pleno desenvolvimento, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Todos, sem qualquer distinção, têm direito à educação e, especificamente, à educação escolar, regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases, a Lei 9.394/96. A Constituição também estabelece que a Educação é dever do Estado e da Família, em regime de co-responsabilidade social, sendo que o primado do dever fica com o Estado.   O texto do artigo 205 deixa implícito que a tarefa de educação é, primeiramente, do Estado e, em segunda instância, da família. Esta tem o dever de matricular nas instituições de ensino os filhos em idade escolar. Por seu turno, o artigo 208 diz-nos que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, bem como pelo acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

Quedemo-nos pelo recordar de alguns princípios norteadores da Educação, nomeadamente do artigo 206 da Constituição: a igualdade de condições para o acesso a escola, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a arte e o saber; pluralismo de idéias e concepções pedagógicas; valorização do profissional da educação escolar (implantação de medidas práticas como salários dignos…); gestão democrática de ensino público, garantia de um padrão de qualidade de ensino. Quantos destes princípios terão sido concretizados pelo Estado, desde 1988?… Quem questiona os elevados índices de evasão escolar, a falência do ensino, a deterioração das políticas públicas?

Dados divulgados pelo Ministério da Educação dizem-nos serem milhões os jovens que abandonam o ensino fundamental. São, também, muitos milhões os alunos reprovados. Os índices divulgados são preocupantes. Um relatório da Unesco mostrou que o percentual de reprovados no Brasil se assemelhava ao de nações muito pobres, como Moçambique, e era superior inclusive ao de outras bem menos desenvolvidas, 
como Camboja, Haiti ou Ruanda. A Escola brasileira está dissociada da realidade. A maioria dos alunos chega aos bancos universitários sem bases para uma formação superior. E, recentemente, emergiu um novo fenômeno: o total de vagas na rede oficial do ensino não é preenchido e as secretarias de educação decidem prorrogar o prazo de matricula… Sobram os espaços ociosos, professores excedentes, turnos desativados e escolas fechadas… Compete ao Estado proporcionar condições mínimas de qualidade na Educação, porém aquilo que o Estado continua a oferecer aos jovens é uma educação arcaica.

Os direitos fundamentais sociais inserem-se no âmbito daqueles que exigem uma ação positiva do Estado, de modo a que o detentor desses direitos (a pessoa) veja melhorada a sua condição de vida. Canotilho, eminente constitucionalista português, afirma que os direitos sociais são verdadeiros direitos fundamentais e, em razão disso, são imediatamente aplicáveis e geradores de efeitos jurídicos. Perante a inércia do Poder Executivo na efetivação dos direitos sociais, questiona-se a possibilidade de exigir tais direitos perante o Poder Judiciário. Emerson Garcia defende que, sempre que o Estado não cumpra com seu dever jurídico, caberá aos interessados o manejo dos mecanismos de acesso à justiça (tais como o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação civil pública) com a finalidade de fazer valer o direito de que é detentor. E, para Sarlet, os direitos fundamentais sociais prestacionais têm por objeto uma conduta positiva do Estado que consistirá numa prestação fática, o que significa dizer que esses direitos invocam uma constante e progressiva ação estatal rumo à realização da igualdade material entre os cidadãos, a fim de que estes possam usufruir de suas liberdades.

Vários são os tratados e declarações que referem a educação como direito fundamental, essencial para o pleno exercício da cidadania: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos da Criança, o Protocolo Adicional ao Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela ONU. Todas essas Declarações foram ratificadas pelo Brasil.

O direito à educação está previsto nas constituições brasileiras desde a época do Império. É um direito subjetivo da pessoa humana o acesso à educação, numa irrestrita efetividade. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação regulamenta o direito de qualquer cidadão ou organização de exigir do Estado, pela via judicial, a garantia do acesso à educação. É legítima a ação cominatória tendente a exigir do Estado a indenização por prejuízos causados, nomeadamente por via do alegado “abandono intelectual”. Os cidadãos têm direito de exigir do Estado que não peque por omissão… Nas escolas que o Estado mantém, professores transmissores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. Por que razão haverá quem se surpreenda com o ressurgimento do ensino domiciliar? Por que haverá quem a condene?

As escolas alegam não existir legislação que permita a prática do ensino doméstico. Mas, se essas escolas não cumprem os objetivos para que foram criadas, assiste aos pais o direito de procurar alhures aquilo que as escolas recusam aos seus filhos. Será preciso que o Estado deixe de agir como o avestruz em situação de perigo… É urgente reabrir o debate sobre as causas e os riscos do homeschooling.

Não faço a apologia do ensino domiciliar como alternativa à escola (adivinho subtis discriminações, pois nem todos a ele terão acesso). Pugno por uma Escola de todos, agente de transformação social, que assegure o direito universal de acesso e de sucesso… nas escolas e nos lares. Afirmo que a tensão entre domiciliar e escolar não tem razão de ser, embora eu compreenda os receios dos críticos. O domiciliar pode engendrar monstrinhos do digital, pode reforçar o têvêschooling (são milhares de horas de tv a competir com a escola). Mas denuncio os discursos de certos “especialistas” que argumentam com a necessidade da frequência da escola para assegurar processos de socialização. Que processos invocam esses discursos? Àqueles que se desenvolvem na solidão de uma sala de aula? Aqueles que engendram situações de bullying? A que socialização se referem esses “especialistas”? Pés na terra e no chão da escola, por favor! Que não se permita que um idealismo fútil encubra a dura realidade da “socialização” que obsoletas escolas desenvolvem!

O domiciliar é bem mais antigo que o escolar. No tempo em que o ensino era privilégio de alguns, as sinhãs eram educadas por preceptores. E, no Brasil, só poderemos falar da existência de uma rede escolar pública, a partir de 1930. Mas poderemos falar de escola pública num país em que o sistema de ensino é gerador de insucesso, onde é evidente o sucateamento da escola de iniciativa do Estado?

O artigo 55 da Lei 8.069 estabelece que “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Mas o Estado terá o direito de condenar jovens ao fracasso, terá o direito de contrariar o Direito? Ou não reconhece a mesma lei o “direito da criança e do adolescente à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa”? Com a sua corajosa atitude de recusa, o Cleber denunciou o status quo da educação deste país, provocou a reflexão, o debate. Na análise do quadro legal, é notória a existência de um direito subjetivo – a faculdade que o indivíduo tem de invocar a norma jurídica. Acaso haja descumprimento da norma estabelecida, o cidadão poderá invocar a norma a seu favor, valendo-se, portanto, do seu direito subjetivo. À semelhança do movimento cívico, que esteve na origem da Lei Maria Penha, talvez seja pertinente pensar numa Lei Cleber…

José PachecoA recusa de matrícula dos seus filhos numa escola é mais um sintoma de uma profunda crise. O acirrar da competição pela demarcação de territórios e as histéricas reacções contra o ensino domiciliar nada resolvem. Se muitos pais duvidam da utilidade da Escola, não será oportuno que esta reflicta sobre o porquê dessa dúvida?

José Pacheco é educador português, especialista em Música e em Leitura e Escrita, mestre em Ciências da Educação. Coordena a Escola da Ponte, da qual é idealizador, instituição notável pelo projeto educativo inovador, baseado na autonomia dos estudantes. É autor de livros e artigos sobre educação.

About the author

José Pacheco