O caminho da solidão e os passos curtos do amor

 Reflexões a partir de Rilke (Cartas ao jovem poeta), Zigmunt Bauman (Amor Líquido) e Aaron Beck (Terapia Cognitiva).

 

“Por isso é tão importante estar sozinho e atento quando se está triste: porque o instante aparentemente parado sem nenhum acontecimento, no qual o nosso futuro entra em nós, está bem mais próximo da vida do que aquele outro ponto, ruidoso e acidental, em que ele acontece como vindo de fora.” Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, L & PM Pocket.

 

Outro dia, vi um amigo lamentar a solidão com grande pesar. Foram suspiros e agonizantes lamentações de quem tem a saúde mental por um fio delicado de alguma paixão não correspondida do passado e alguma eminente catástrofe escrita no futuro. Tudo por causa do Dia dos Namorados. Em seguida, agora em Agosto, o ouvir gemer em sofreguidão terminal de quem tem a vida ameaçada por doenças purulentas quando se aproximou o Dia do Solteiro. Ainda não liguei para saber notícias, mas pesquisei em alguns sites de relacionamento e um Nick em particular me chamou a atenção: Solteirão_Desesperado_Agoniza quer conhecer você, quase qualquer pessoa.

A internet vem funcionando para alguns como a salvaguarda de relações já fragilizadas, ou acentuação desses vítreos contatos (porque são delicados e não transparentes). Nos labirintos impessoais dela percorrem pessoas existindo com “intenção de ser”, que existem enquanto ideia. Reduzem e aperfeiçoam características irrelevantes, aprimoram mentiras divertidas, entregam o corpo para corromper o grande esforço que parece ser acreditar num relacionamento saudável, ou possível, ou, no mínimo, satisfatório. Então, as expectativas são aceleradas e tentam se tornar reais, encaixando-se forçosamente num espaço (estas ausências que só aumentam quando usamos o desespero de amarmos quem não queremos para preenchê-los) apertado que não comporta nem mesmo seus próprios mistérios. Quem procura desesperadamente quase qualquer amor parte para revelações propositadas numa comunicação desenfreada cujo conteúdo é etéreo, vago, como se falassem de amor-fumaça esperando o início de alguma fagulha. 

Na internet, a capacidade de reinventar-se, ou inventar-se pela primeira vez, é proporcional à oferta de novos produtos a serem adquiridos. Assim, o “amor verdadeiro”, o real, aparentemente intocável, permanece intacto; a impressão é que por não ter dado certo da primeira vez (ou de todas as outras seguintes) não foi verdadeiro, e assim não foi real.

Os solteiros costumam ser injustamente rotulados de inseguros crônicos que, para não afundarem nas profundezas de uma decepção ou rejeição (apenas possível rejeição), evitam relacionamentos ou aproximações com homens e/ou mulheres (ou objetos e bichos que berram). Um solteiro não é uma ilha no pacífico com um vulcão adormecido com amargura e dor borbulhando aquecidas; solteirice ainda pode ser uma escolha, um momento de procurar um outro caminho, de experimentar com os amigos a contemplação de uma vida nova, de repensar valores e conceitos que foram plantadas antes de nem entenderem o que é amor.

Talvez os solteiros estejam buscando investimentos mais apropriados, algo que mantenha o desconforto questionável que pode ser “estar sozinho”, no entanto, continuam a sustentar um bom senso adequado para preparar sua solidão dentro de movimento calmamente decente que é apreciar outra solidão. A solteirice deveria ajudar o sujeito a despender mais tempo, reflexão com recheio de afeto, e não aceitar formulações sobre amor, família, amizade, futuro, emprestadas.

A solidão não será aflitiva se trouxer consigo a possibilidade de reflexão sobre ela própria. Da mesma forma que estar triste só será o massacre de um futuro se não tiver um valor de aprendizado, se não for encarado como um aviso importante de que mudanças precisam ser avaliadas.

Entendi cedo que minha solidão (como oportunidade, não como catástrofe) é um resgate do amor-próprio que deixei morrer em todas as iniciativas românticas falhas que presenciei.  Não foram desastres; apenas diferenças. Ninguém sabe ao certo qual a coisa certa a fazer (que palavras usar, que carinhos iniciar, em que horários deixar o coração ceder, que declarações não nos tornará um amontoado de esperas histéricas e ressecadas), nem o tamanho do presente que se tornará um passado seguinte, a história que não começou, pois “namoro”, “relacionamento perfeito”, “amor” são conceitos formulados e dependem do que cada um pensa sobre eles; depende do entendemos deles.

Ou vai me dizer que você não tem aquele amigo que questiona a função dele no mundo, o sentido íntimo do seu valor no universo só porque chegou o Dia dos Namorados e ele está solteiro?

Procurar o amor ainda é aceitar permanecer sozinho com os próprios mistérios dentro da liberdade de outra solidão apenas compartilhada; uma solidão com repetição de equívocos possíveis, e que permitem o abandono de padrões antigos, formas vencidas de interpretar a vida.

Solidão também é amor enquanto descoberta; é abrir os olhos para uma preparação: a preparação de algo único que recebe em si outras alheias possibilidades, e que se altera, que se permite mudanças esclarecidas, livres, e sempre abertas a outras mudanças.

Penso que, ao contrário do que alguns pensam, solidão não é o abrigo úmido para decepções e frustrações insuperáveis que alguns carregam como fardo. Solidão é, sim, um vasto campo aquecido por decisões preparadas com maturidade e contestações dedicadas que correm livres como redemoinhos espertos que desarrumam a firmeza de qualquer natureza sem arrancar-lhe a beleza.

Tentar inúmeras vezes o amor que se desgasta em nós, cegamente, sem questionar-se, não é uma iniciativa que leva ao sucesso. A ideia de que cada vez que se tenta um novo amor prepara-se com eficiência para o amor seguinte não significa sucesso nas tentativas que virão, pois, na verdade, cada amor que virá, será novo, em outro contexto, e por isso diferente. As águas que lavarão seu amor estacionado no fundo do seu rio turvo serão outras. 

Neste ponto, a questão que merece certa consideração são namoros engatilhados como defesas contra a solidão. Na busca do “ser apenas um com o outro” encaramos a solidão como a próxima guerra que abalará nosso futuro, e então nos preparamos para o combate. Organizamos as linhas de frente com uma armadura de discernimento frágil, carregamo-nos de uma munição pesada de “aceitar a qualquer custo o que vier” e entramos em campo minado, esquecendo, porém, as armadilhas de insatisfação escondida, ainda na superfície de nossas escolhas, que explodirão quando o outro, este que aceitamos como íntimo, mas não único, discorda de nós, não faz ou aceita as escolhas que sustentamos, ou prefere Paula Fernandes ao invés dos concertos de Bach. E vamos sacrificando diálogos que salvam, fuzilando qualquer possibilidade de ajustamento e entendimento. Evitamos a solidão e ainda assim aceleramos um desastre íntimo. 

Penso ainda que o elemento assustador na solidão seja a novidade; é amargar fora das expectativas alimentadas pelos doces conceitos dos outros.

O deprimente “Só é feliz quem namora, então não posso ser feliz sozinho” se torna o eco dos desesperados caindo eternamente no poço sem fundo da solidão que eles não entendem. Não suportamos o desconhecido que cresce em nós rumo ao amanhã, este bicho chamado futuro que vem como mistério e que tentamos decifrá-lo e dominá-lo com a convicção forçada com que tentamos adequar nossa ideia de amor às convenções.

Não me refiro a uma solidão fechada em si, que engole depois de ferozes mordidas nosso amor-próprio (amor-próprio que está longe de ser aquela emboscada que muitos criam enquanto brava resistência ao amor de outras pessoas) e capacidade de compartilhar individualidades, abrindo mão de um compromisso palpável com aqueles que pretendemos apreciar por muito mais tempo. 

Expectativas irreais acerca de um relacionamento ou avaliações negativas extremadas a respeito de ser sozinho podem influenciar em suas atitudes com a solidão. Então, ela pode transformar-se numa repetição de equívocos, quando deveria ser um estado que muda de forma e cor dependendo das iniciativas de quem o experimenta.

(Não quero limitar a ideia de solidão à solteirice. Pois não existem os solteiros convictos que experimentam outras solteirices com o desapego como ferramenta incontestável tanto para regular sua segurança como para ajustar sua sociabilidade?)

Então a tristeza, o amor, a solidão, a decepção não vêm de fora, dos outros; são desconhecimentos que fixaram residência em nós; só não conseguimos precisar o local da morada, não descobrimos que porta escolher para presenciar a revelação, que chave procurar. O futuro, a vida nova, o amor, a solidão: são de dentro pra fora.

Estar sozinho pode ser um exercício. Uma escolha passageira que pode favorecer uma mudança permanente. Dependendo do ponto de vista.

Estar sozinho é um dos caminhos que podemos traçar com sossego, paciência e uma esperança realista até o amor chegar renovado e satisfatório.

(Solteirão_Desesperado_Agoniza acrescenta a seu status: Minha solidão diz que cansou de ser sozinha. Quer outra solidão só pra ela. Todinha.)

 

 

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Raimundo Neto