Cultura do Brincar By Rafael Reinehr / Share 0 Tweet Por um desvio suave do dia, passei a pé pela rua onde morei desde a infância, quando me mudei para Belo Horizonte no início dos anos 60. Parei na esquina e fiquei um momento em silêncio. Sempre digo que o silêncio é uma estratégia de escuta, de recepção, de emergência de sensações outras. Assim, vieram […] Imagem: por Moontan Por um desvio suave do dia, passei a pé pela rua onde morei desde a infância, quando me mudei para Belo Horizonte no início dos anos 60. Parei na esquina e fiquei um momento em silêncio. Sempre digo que o silêncio é uma estratégia de escuta, de recepção, de emergência de sensações outras. Assim, vieram coisas. Algumas lembranças logo apareceram. Emoções fortes surgiram. Permaneci quieto. A minha árvore ainda está lá. Menos a casa, que virou, com mais duas outras, um enorme prédio. E vieram também lembranças puras. Como explicá-las? Elas não figuram. Mantém em suspenso qualquer atualização: estão lá, podem advir, mas permanecem ausentes. Armazém de coisas ainda não-coisas. São essas as forças que nos garantem em momentos difíceis, principalmente quando temos de nos inventar mais uma vez. Assim vejo a infância também: não o que se encaixa numa classificação das imagens registradas, mas aquilo que se abre para o futuro. Nossa tendência é entender a memória como uma representação do passado, estabelecendo um todo fechado. E como somente falamos da infância porque passamos por ela, lá a colocamos: uma coisa entre as coisas. Destacamos alguns traços de afeto. E nos satisfazemos com isso. Mas as lembranças-puras são coisas ainda-não coisas. Por que as lembranças-puras podem isso? Por se manterem em estado de potência, de virtualidade. Quando estão atualizadas, configuram um passado representado: a imagem-lembrança. Aliás, necessitam destas para se atualizarem. Mas quando são lembranças puras, elas habitam os hiatos. E formam provisões do futuro. São caminhos de matéria e memória, trilhados por Bergson e talhados por Gilles Deleuze. Uma rua vazia, assim era a Gabriel Santos em alguns horários, como agora, em que passo e fico quieto, a deixar olhar o sentir e vice-versa. Principalmente às tardinhas, quase ninguém passa ali. Mas na minha infância, na fresta que se abre entre o dia e a noite quando chegávamos das aulas, gritos e correrias inundavam tudo. Isso até o fim dos anos 60. Depois disso, ficou cada vez mais vazia em todos os horários, a não ser pela interminável fila de carros estacionados, a cada lado, estrangulando a rua. Volto às lembranças, depois desse atravessamento. Como fazer para que a infância e outras matérias da memória não percam suas potências? Entre outras disciplinas criativas, que cada um pode aprender ou inventar para si, digo que o segredo reside no silêncio e na quietude: vida em turbilhão. Não é ummodo de ficar em monólogo interior. Nem se prender a um bombeamento de sentimentos achados, coisas que ficaram no arrastão do tempo e que a gente não deixa desaparecer. Sentimentalismos, por exemplo, são modos de nos protegermos do caos. Bonitas ou feias, tristes ou alegres, as coisas encontradas também irão sumindo. Você permanece quieto e em silêncio. E algo da ordem do impensável pode ser percebido. Uma contemporaneidade do passado, formando um todo que se abre em algum lugar para o novo. Então, as lembranças-puras não são coisas guardadas. Sãos estados que aparecem e flutuam. Ao contrário do passado estático, que fecha um círculo e domestica o tempo, o passado dinâmico abre brechas. É um deixar ser: let it be. Ou como diz o pré-socrático Heráclito de Êfeso: pantha rhei – tudo flui. Habitar memórias não é ficar preso de uma representação do passado. E isso vale, como disse antes, para a infância: a nossa, de adultos, a dos que estão vindo. Num plano, é um reescrever de novos afectos. Noutro plano, é uma abertura para o futuro. Sim, a infância-memória é isso: armazém de coisas ainda não-coisas. Referências: BERGSON, Louis-Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999 PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004. Leia no blog de origem: Cultura do Brincar » Luiz Carlos Garrocho