Praguejando By Gilberto Agostinho / Share 0 Tweet Praguejar, ou não praguejar: eis a questão. Eu, mais uma vez, irei discumprir algumas promessas feitas aqui. Sim, eu sei que eu comentei sobre os assuntos das próximas resenhas no post anterior, mas estes assuntos serão adiados pois hoje quero escrever sobre algo diferente. Sempre me vem à cabeça alguns temas que não envolvem Praga, e hoje eu resolvi não me importar mais com isto. Se alguém por aqui achar isto ruim, basta ligar para o nosso SAC (agora aonde vocês encontram este telefone é um grande mistério). Hoje eu vou falar sobre Shakespeare, e mais precisamente, sobre Hamlet. Eu tive uma overdose com a história do príncipe da Dinamarca nestes últimos tempos, tendo lido umas três traduções diferentes e assistido a alguns filmes também. Comecemos pelas traduções então. Traduzir Shakespeare é uma tarefa dificílima. Para os que nunca se aventuraram nos originais, saibam que o escritor britânico escreve em um inglês arcaico, o que dificulta muito o entendimento do seu texto. Shakespeare criou muitas palavras novas e deu sentido novo à palavras antigas. Além disto, muitas palavras que nós pensamos conhecer o significado hoje em dia tinham um sentido completamente diferente na sua época, como, por exemplo, "awkward" que quer dizer "contrário", e não "estranho" como esperaríamos, ou então "intermission" que pode significar "atraso", e não somente "pausa". Eu tenho perguntado a vários amigos ingleses e americanos o que eles acham de Shakespeare, e pelo que eu vejo eles tem um trauma com o pobre escritor. Eles simplesmente não entendem seus textos! Seria um crime simplificar a sua obra, mas um tradutor não tem este mesmo problema. Ele pode traduzir a obra para um português culto mas que seja amplamente entendido. E eis então a nossa vantagem! Ler Shakespeare em português é fácil, no sentido que as palavras significam exatamente o que se espera delas, e também pelo fato de nunca nos depararmos com palavras desconhecidas ou arcaicas. Claro que isto somente ocorre se o tradutor tiver bom senso. Há muitas versões escritas em português arcaico, o que é uma das maiores imbecilidades, na minha opnião. Simplesmente não há motivos nem justificaticas para isto! Hamlet traduzido para a língua fictícia Klingon (!) Em português, a melhor versão de Hamlet que eu conheço é a do Millôr Fernandes, que pode ser comprada pela bagatela de R$10 na versão de bolso, pela L&PM Pocket. Uma tradução clara, elegante, com soluções extremamente inteligentes, como este pequeno trecho mostra: Pol. – What do you read, my lord? Ham. – Words, words, words. Pol. – I mean, what is the matter, my lord? Ham. – Between who? Pol. – I mean the, the matter that you read, my lord. que é traduzida da seguinte forma: Pol. – Que é que o meu príncipe está lendo? Ham. – Palavras, palavras, palavras. Pol. – A que respeito, príncipe? Ham. – Entre quem? Pol. – Refiro-me ao assunto de vossa leitura, príncipe. Uma das maiores características deste personagem é sua agilidade para trocadilhos. Hamlet, sempre que pode, finje entender as frases com um sentido diferente da intenção do seu orador, respondendo de maneira inesperada. Esta é uma das características que ele emprega para fingir que está louco. Neste trecho, "matter" deveria ser entendido como "assunto", mas o jovem príncipe responde como se Polônio quisesse dizer "problema". Esta solução de Millôr é realmente muito boa. Uma outra tradução interessante é a de Péricles Eugênio da Silva Ramos, da coleção Teatro Vivo, da Abril Cultural. Sua tradução não chega aos pés da elegância de Millôr, mas contém uma vasta seção de notas. Quase um terço do livro são notas, e a maioria delas é interessante. Aconselho esta edição para quem está tomando coragem para partir para cima do original em inglês, já que as tais notas ajudam muito no entendimento do texto original de Shakespeare. Agora falemos sobre os filmes feitos sobre Hamlet. Sinceramente nenhum filme me agradou plenamente. Não vou nem perder meu tempo falando muito sobre "Hamlet 2000", com Ethan Hawke no papel principal. Basta lembrar que, na cena em que ele declama o famoso monólogo "Ser, ou não ser", ele está andando dentro de uma locadora de filmes Blockbuster, e o monólogo é declamado sem expressão alguma. Também não vou falar muito sobre a versão do Mad Max, digo, Mel Gibson, no qual o brutamonte não convence ninguém de ter conflitos existenciais. A versão de Olivier Laurance é quase aceitável. O ator, e também diretor, fez cortes homéricos no texto, mas eu imagino o quão difícil seria convencer alguém a patrocinar um filme de quase quatro horas em 1948. O Hamlet de Laurance é existencialista, e sua atuação me agrada, mas ele exclui todos os fatores políticos da peça. E os outros atores são horrorosos… até eu seria uma Ofélia melhor, mesmo de barba. Além disto, há um certo exagero nas cenas com a sua mãe, a Rainha Gertrude. Freud dizia que Hamlet é mais um exemplo de personagem edipiano, e Laurance levou isto a sério demais. Além disto, o filme começa com a frase mais reducionista que eu já ouvi a respeito deste livro: "Hamlet, a tragédia de um homem que não conseguiu se decidir". Minha tia não consegue se decidir sobre qual marca de biscoitos ela irá comprar (o que pode acarretar em uma tragédia também), mas a questao hamletiana é muito diferente disto. Hamlet não consegue se decidir por ser extremamente perspectivista. Há cenas em que lhe falta coragem para levar a vingança de seu pai a cabo, e ele racionaliza isto, então omite, então floreia. Hamlet não se coloca como um herói, como mostra esta frase dita a Ofélia: "Eu, de mim, considero-me mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria sido melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para vesti-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los". Ele só consegue concretizar a vingança quando a tragédia se torna completamente inevitável, mas isto só acontece porque ele racionaliza demais, e não por não fazer isto. Bola fora, Laurance… Também existe a versão de Keneth Branagh, e esta sim é interessante. O filme tem quatro horas e não possui nenhum corte no texto original. A atuação de Kate Winslet como Ofélia é simplesmente impecável. Ela está fabulosa! – e eu achando, antes de assistir, que ela seria o ponto fraco do filme. Já Branagh nos mostra um Hamlet angustiado como deveria ser, se ele não pecasse pelo exagero. Seu Hamlet grita demais… Por exemplo, na cena em que os atores vão encenar a peça no castelo, eu sempre enxerguei Hamlet sentado o tempo todo ao lado de Ofélia, fazendo seus comentários em voz baixa, muitas vezes para si mesmo. Já Branagh pula no palco, grita, chora, berra. Além disto, a trilha sonora é de lascar… piegas, piegas. E a cena final da luta de esgrima contra Laertes é horrorosa, completamente hollywoodiana. Eu sou um esgrimista iniciante, mas já conheço o suficiente para rir muito desta cena. Há também alguns pontos originais (e interessantes) nesta versão, como a prostituta no quarto de Polônio, a invasão de Fortinbras ao castelo e o fato de que Hamlet nota a presença de Polônio e do Rei, que estão escondidos, na cena em que Ofélia esta lendo no pátio, esperando que o príncipe venha falar com ela. Estas são boas sacadas do diretor, já que ele somente interpreta o texto original de formas não convencionais. Eu possuo um Audio Book, também com Branagh, o qual é muito superior ao filme, mas ainda sinto um Hamlet exagerado ali. Há outras versões que eu ainda quero ver. Eu assisti a trechos com Richard Burton, em sua versão de 1964 estreiada na Broadway, e ele me pareceu extremamente interessante. Também fiquei curioso pela versão que passou nas televisões inglesas em 1990, estrelada por Kevin Kline. É curioso, mas quando eu leio o texto e tento imaginar que ator cairia bem no papel de Hamlet, sempre me vem à mente Max von Sydow, do fantástico "O Sétimo Selo" de Bergman. Também fiquei muito curioso com a versão brasileira estrelada por Wagner Moura. Consegui assistir a alguns trechos também, e a sua versão me pareceu realmente boa (vejam só, o tradicionalista aqui também sabe ver beleza na pós-modernidade). E aí, alguem assistiu a esta versão da peça? Se sim, comentem, eu fiquei extremamente curioso sobre a opnião geral do público. E é isto então, espero que vocês tenham gostado da mudança de ares desta coluna. Quanto à Praga, ela continua bem e reaparece por aqui na semana que vem. Aguardem os próximos textos, que serão os que eu prometi da última vez. Até breve, então!