René Descartes e a luta contra o senso comum e os preconceitos

Cogito ergo sum

Para, meu web amigo, Rafael Reinehr

René Descartes (1596-1650) foi um gênio do pensamento filosófico e matemático. Somente a criação do “plano cartesiano” seria suficiente para colocá-lo no Panteão da história. O plano cartesiano é formado por dois eixos perpendiculares, o horizontal ou das abscissas e o vertical ou das ordenadas e permite localizar os pontos no espaço. Os quatro quadrantes do plano cartesiano são utilizados em todos os campos da ciência e da vida e se ele ganhasse um centavo de Real por cada utilização desta invenção seria o homem mais rico do mundo.

Mas ao inves de se preocupar com dinheiro, Descartes era um filósofo, humanista e iluminista. Sem dúvida, é um dos pensadores mais importantes da história da ciência. O seu livro “Discurso sobre o método” começa com a seguinte constatação irônica: “O bom senso é a coisa mais bem distribuida do mundo. Ninguém acha que tem bom senso de menos, pois todo mundo acha que tem bom senso demais” (estou citando de memória). Mas o que acontece quando um bom senso se choca com outro bom senso? Como podemos medir qual é o bom senso mais acertado? Qual a diferença entre o bom senso e o senso comum?

Para dirimir o conflito entre dois “bons sensos”, René Descartes propôs um método científico, que é a base do seu tão importante texto “Discurso sobre o método”. Ou seja, para sairmos do senso comum e das percepções individualistas do “bom senso” é preciso utilizar um método científico e racional para discernir as ilusões dos sentidos. Assim como Copérnico já havia mostrado que, na aparência dos sentidos, o Sol gira em torno da Terra, mas a ciência comprova que é a Terra que gira, permitindo, ao senso comum, uma sensação contrária, de mobilidade do sol.

Devemos lembrar que Descartes viveu em plena era da Inquisição e no limiar de mil anos da Idade das Trevas (que, de grosso modo, vai do fim do Império Romano às grandes navegações). Descartes queria superar a ignorância, os preconceitos e as supertições religiosas, medievais e do senso comum, marcadas por séculos de deseducação científica. Para tanto, propôs que o investigador (e as pessoas comuns) deveriam  sempre duvidar de tudo, em todos os momentos e lugares.

O método cartesiano põe em dúvida o mundo das coisas sensíveis e o das coisas inteligíveis. Contra as certezas das igrejas, Descartes afirmou que a razão é a base para se alcançar o conhecimento. O princípio cartesiano é localizar as informações nos quadrantes e tornar o conhecimento fruto da experimentação, submetido à esfera da ciência e da razão, ou seja, pesquisar empiricamente, cientificamente, historicamente e racionalmente todos os fatos da vida.

Foi graças a racionalidade cartesiana e iluminista que houve redução das taxas de mortalidade e elevação da esperança de vida da população mundial. Hoje vivemos por mais tempo e com melhor qualidade de vida e temos um sistema de ensino e de pesquisa científica que é inigualável (a despeito das inúmeras imperfeições). Foi em função do pensamento racional de Descartes, Rousseau, Voltaire, Diderot, etc. que a idéia de origem divina do poder foi por água abaixo e se implantou a Res Pública e a democracia onde o poder emana do povo e para o povo. Graças às idéias iluministas a cidadania e os direitos humanos se tornaram práticas universais e bandeiras que pertecem hoje aos movimentos sociais de base.

Foi em função do império da racionalidade que Adam Smith combateu o mercantilismo e defendeu a teoria do valor trabalho (que foi adaptada e se tornou a base da teoria marxista); que os Federalistas Norte-americanos fizeram a Independência e construíram uma República livre dos ditadores e dos padres; e que Thomas Paine – herói de duas Revoluções – escreveu o seu fantástico libelo “O senso comum”.

Devido à Descartes, aos demais cientístas e filósofos do Renascimento e a milhões de outras mentes dedicadas à ciência, foi possível, nos dias atuais, a construção do LHC (Large Hadron Colider), um anel com 27 quilometros de extensão, a 100 metros de profundidade, do CERN (o centro europeu de física nuclear, perto de Genebra, na fronteira franco-suíça), onde pela primeira vez foram feitas colisões de partículas tentando recriar as condições que existiam no início universo, logo após o Big Bang.

Contudo, este artigo não visa fazer uma defesa cega de Descartes e do racionalismo. Pois, felizmente ou infelizmente, a racionalidade não é uma panacéia para todos os problemas humanos e terrestres. O racionalismo (isto é inerente ao método) precisa duvidar da razão.

Existem pessoas que enchem a boca para dizer que são “anti-cartesianas”. Se fosse apenas inocência, não passaria de uma postura ridícula que reflete uma ignorância da história da filosofia e da ciência. Acontece, que muitos anti-cartesianos são aquelas  mesmas pessoas que compoem as forças do atraso, do preconceito e das supertições que dominaram o mundo por milhares de anos antes do surgimento de figuras exponenciais como René Descartes, Galileu, John Locke, David Hume, etc, que desenvolverem métodos de pensamento e sistemas de ensino e pesquisa científicas seminais.

Dito isto, não quero afirmar que a razão tem sempre razão. Como mostrou Sérgio Paulo Rouanet (As razões do iluminismo, SP, Cia das Letras, 1987):

“O conceito clássico de razão deve efetivamente ser revisto. Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não há como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios e fins. Depois de Adorno, não é possível escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza e sobre os homens. Depois de Foucault, não é licito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão”.

Além desta sábia constatação sobre a racionalidade ocidental do ex-embaixador Rouanet, gostaria de acrescentar que o pensamento oriental desenvolveu um método que, sem abandonar a razão, pretende ir além da racionalidade. Trata-se do Zen Budismo que, enquanto filosofia (e não simplesmente uma religião), concentra-se no conhecimento adquirido por meio da experiência direta, ao invés de pensamentos racionais ou escrituras reveladas. Para o Zen Budismo, a verdadeira natureza de todas as coisas, está além do conhecimento do discurso e da definição das palavras. Isto é, a racionalidade só tem a capacidade de atingir uma parte da realidade (sobre Zen Budismo pretendo fazer outro artigo), sendo necessárias percepções mais transcendentais para se chegar ao âmago do conhecimento.

Entre as diversas tentativas de conciliar a racionalidade ocidental e a meditação oriental, gostaria de citar o livro de Daniel Coleman: “A inteligência emocional”. Coleman afirma que o controle das emoções contribui de forma essencial para o desenvolvimento da inteligência do indivíduo. Seguindo a crítica à “racionalidade instrumental”, assim como Max Weber, ele defende a idéia de que o uso da razão pode levar a “becos sem saída” e, em uma situação de incapacidade de lidar com as próprias emoções, pode dificultar ou até destruir a vida das pessoas. Para Coleman existem duas mentes: a que raciocina e a que sente. Em certas situações, essas mentes se coordenam, sendo que, numa via de mão-dupla, os sentimentos são essenciais para o pensamento.

Coleman propõem conciliar o lado racional com o emocional, pois muitas das nossas ações são determinadas pelas emoções que têm sua “razões” e lógicas peculiares. Isto não é novo, pois como diria Blaise Paschoal (1623-1662), contemporâneo de Descartes: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Desta forma, não estamos aqui fazendo uma defesa cega da racionalidade. Muito menos queremos sufocar as emoções. O que não podemos é “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. A racionalizade cartesiana não é o remédio para todos os males humanos e nem tampouco pode ser acusada pelos danos que se cometeram em função do seu uso (ou mal uso) de forma instrumental. Descartes foi um gênio, o que não nos impede de reconhecer que muitos “crimes” foram cometidos em seu nome e com a utilização do seu método. Porém, os crimes cometidos em função da ignorância, dos preconceitos, das supertições e das crenças religiosas foram muito maiores. Isto posto, continuamos defendendo a racionalidade, mas também os bons usos da inteligência emocional e da meditação zen e transcedental.

 

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José Eustáquio Diniz Alves