Ao Sul de Lugar Nenhum By Diogo Brunner / Share 0 Tweet O ato de apontar uma câmera para algum ponto específico e apertar o obturador perpassa muitos caminhos que passam longe de simplesmente congelar um momento para a posteridade. O termo fotografia, por si só, já nos oferece algumas diretrizes para pensarmos o que está além de uma simples foto. Foto = luz. Grafia = escrita. Escrita da luz. A fotografia que me interessa é algo que está totalmente imbricado com o ato de escrever e, sobretudo, o ato de se movimentar, estar em trânsito, viajar, dialogar com novas culturas. Dialética do perigo/prazer para os inquietos e ansiosos. Quando você fotografa algo, você destrói algo, para reconstruir sobre os escombros. Tarefa por vezes incômoda. Normalmente, destruímos aquilo que não toleramos e construímos algo um pouco mais à nossa semelhança. Retiramos sua aura. Para Walter Benjamin, a aura é o caráter único das coisas. A reprodução acaba com essa unicidade, construindo outros sentidos para o mesmo objeto. O cinema é um exemplo clássico de fusão de escrita e fotografia. O cineasta alemão Wim Wenders é um típico caso dos que vêem a fotografia como cinema, a escrita como viagem, e a viagem como fotografia. Em Alice nas cidades, filme de 1974, temos alguns momentos de explícita reflexão fotográfica, expressa diretamente em palavras. Mas temos também a forte presença fotográfica na estética. Wenders, além de cineasta, também um grande fotógrafo, trabalha sempre em prol de belas imagens, normalmente explorando a vertente cinematográfica chamada de road movie, os filmes de estrada, de errância, de movimento. A luz, essa coisa aparentemente meio abstrata, parece ser seu principal instrumento de trabalho. Luz natural ou técnica, o que importa é o resultado que ele consegue extrair disso. Da boca do protagonista de “Alice nas cidades” saem frases como “eu fotografei como estivesse possuído”, “o que fica retratado nunca é aquilo que vimos” (lembremos aqui de Benjamin e a perda da aura) ou “quando alguém viaja muitas coisas podem acontecer através das fotos que se vê”. Wenders constrói seus planos como o verdadeiro fotógrafo que é. Escreve como grande viajante que é. Composição e enquadramento parecem ser pensados um por um, milimetricamente. Outro cineasta que flertava apaixonadamente com a fotografia foi o italiano Michelangelo Antonioni, principalmente em Blow-Up. Na estética, planos perfeitos, encaixados como um complexo quebra cabeças, cada elemento compondo a cena com algum tipo de sentido. No enredo uma reflexão sobre fotografia e realidade. Até que ponto o que vemos em uma foto de fato aconteceu ou foi apenas uma recriação do nosso olhar? Espécie de metalinguagem fílmica/fotográfica, pois no próprio cinema recriamos sentidos nem sempre de acordo com a idéia inicial do criador. O cinema são fotos em movimento. Imagens dentro de imagens. Sentado num lugar desconhecido, fotografando, moldando a luz, escrevendo, estamos criando algo, algo que diz alguma coisa, mesmo no caso de não querer dizer nada. Mas quase nunca as fotografias claramente de denúncia são as mais políticas. Uma simples composição, um simples ângulo ou enquadramento, colorido ou preto e branco, pode denotar toda uma ideologia, comunicar uma idéia. O que significaria fotografar o vazio? Ou um menino de rua? Denúncia ou mera exploração estética da miséria? Escrever, viajar e fotografar trata-se de criar experiência, de comunicar, de recriar e de compartilhar. Coletivizar para não individualizar. As imagens sempre querem alguma coisa, elas não vêm à toa, elas não estão a passeio, e assim como a história elas estão abertas a interpretações e novas construções. Ou destruições. Breve adendo: Rio de Janeiro e o Poder da imagem. As imagens da guerra civil no Rio são claras. Imagens aéreas de traficantes correndo com o rabo entre as pernas, grandes tanques de guerra e soldados do exército, cartas de supostas crianças agradecendo à polícia. Aquela mesma polícia envolvida em inúmeros escândalos de corrupção, envolvida com esses mesmos traficantes. Mas as imagens se esforçam para dizer justamente o contrário: os salvadores da pátria chegaram e expulsaram para sempre os bandidos, finalmente a guerra no Rio acabou. Primeiro: grande ilusão achar que algo vai se resolver com tiros de fuzil e uma ou outra prisão. Algo muito maior caminha por trás desse monte de sangue: o velho capitalismo que continua empilhando vitórias, nas palavras de Roberto Schwarz. Segundo: ver o exército na rua me dá calafrios, e porque não, abre um estranho precedente que sem maiores esforços me lembram tortura, ditadura, 64, perseguição política. Que saibamos fazer corretamente a leitura dessas imagens e que um bando de traficante fugindo com medo da polícia não significa paz, como alguns querem insistentemente nos fazer crer.