8 de março: as mulheres e o processo de despatriarcalização

A data de 8 de março é dedicada ao Dia Internacional da Mulher. É um dia de luta e de comemoração dos avanços alcançados nestes 100 anos desde o início deste dia de luta. A despatriarcalização, ou seja, a perda de espaço das tradições e legislações características do passado patriarcal, tem cedido espaço para uma nova realidade de relações mais igualitárias de gênero. A despatriarcalização da sociedade é uma conquista que teve início no Brasil do século XX e que deve se aprofundar no século XXI. Embora longe do ideal, as mulheres estão conquistando maior reconhecimento e maiores direitos no país.

Assim como outros países do mundo, o Brasil passou por uma onda de despatriarcalização, representada por uma longa mudança institucional que propiciou uma disrupção dos privilégios masculinos na família e na sociedade e a concessão de crescentes direitos às esposas e aos filhos. As regras de casamento e de parceria sexual se diversificaram e se tornaram mais equitativas no tocante às relações de gênero, entendidas de maneira não binária. Os casais com filhos deixaram de ser maioria absoluta dos arranjos domiciliares e cresceu o percentual de casais sem filhos, famílias monoparentais e pessoas vivendo sozinhas. A transformação mais marcante do século XX no Brasil – e que sintetiza as mudanças sociais, econômicas e demográficas – foi a alteração da presença da mulher de coadjuvante das decisões familiares para protagonista da sociedade em termos globais e institucionais.

Durante a maior parte do século XX, o Brasil conviveu com os princípios discriminatórios do Código Civil de 1916. O texto da Lei privilegiava o lado paterno em detrimento do materno; permitia a anulação do casamento face à não-virgindade da mulher (mas não do homem); afastava da herança a filha de comportamento “desonesto” e não reconhecia os filhos nascidos fora do casamento, que eram considerados “ilegítimos”; identificava o status civil da mulher casada ao dos menores, silvícolas e alienados – ou seja, ao casar, a mulher perdia sua capacidade civil plena, não podendo praticar uma série de atos sem o consentimento do marido. Como afirmou Pena (1981):

“O Código Civil de 1916, no que se refere aos direitos femininos, representou o reconhecimento e legitimação dos privilégios masculinos; aqueles direitos de fato consistiam na organização coercitiva da dominação do homem na família e na sociedade. Através dele regulou-se e limitou-se o acesso das mulheres ao trabalho e à propriedade” (p. 146).

Este Código, que era a expressão jurídica do patriarcado no Brasil, prevaleceu plenamente em vigor até 1962, quando foi revogado pelo “estatuto da mulher casada” (Lei 4.121/1962), que avançou no tratamento paritário entre os cônjuges, mas não eliminou todos os privilégios do “Pátrio poder” (poder dos pais/homens), permanecendo diversos tipos de assimetria de gênero como no caso das mulheres que eram consideradas “concubinas”.  A chamada “Lei do concubinato” (Lei nº 8.971) só entrou em vigor em 29/12/1994.

As conquista femininas ficaram mais ou menos congeladas nos primeiros dez anos do regime autoritário. Porém, a partir de 1975 (Ano Internacional da Mulher) operou-se um resgate das conquistas e do avanço formal da cidadania, que foram marcantes para a história das mulheres brasileiras. O direito ao divórcio, por exemplo, só passou a vigorar no Brasil com a Lei n. 6.515 de 1977. O processo de redemocratização e a criação da “Nova República” possibilitaram a consolidação de conquistas práticas e jurídicas, consolidadas na Constituição Federal de 1988. Segundo Pitanguy e Miranda (2006):

“A Constituição Federal de 1988 simboliza um marco fundamental na instituição da cidadania e dos direitos humanos das mulheres no Brasil. O texto constitucional inaugura os princípios democráticos e rompe com o regime autoritário militar instalado em 1964. Pela primeira vez na história constitucional brasileira, consagra-se a igualdade entre homens e mulheres como um direito fundamental. O princípio da igualdade entre os gêneros é endossado no âmbito da família, quando o texto estabelece que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelos homens e pelas mulheres” (p. 23).

Sem dúvida, a Constituição Federal Brasileira de 1988 representa um novo marco político institucional do sistema jurídico brasileiro e impôs a adequação de todas as normas legais aos parâmetros dos direitos humanos. É dentro deste marco que foram promugaldos o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069 de 13/07/1990), o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741 de 01/10/2003) e o novo Código Civil brasileiro (Lei 10.406, de 10/1/2002). As conquistas obtidas no plano interno têm correspondência com vários avanços realizados no plano internacional e consolidados em documentos, conferências e tratados, tais como:
–    Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);
–    Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW – (1979);
–    Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1989);
–    Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes/89;
–    Convenção sobre os Direitos da Criança (1990);
–    Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1992);
–    Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992);
–    Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (1993);
–    Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher/94;
–    Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim (1995);
–    Convenções da OEA, em especial a Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, Belém do Pará (1994);
–    Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – CIPD – do Cairo (1994)
–    IV Conferência Mundial das Mulheres – Pequim, 1995

Paralelamente a essas conquistas jurídicas as mulheres avançaram em vários campos. Na saúde possuem esperança de vida bem superior à dos homens. Na educação, houve reversão do hiato de gênero, sendo que as mulheres conquistaram anos médios de estudo mais elevados e são responsáveis por 60% do número de concluintes do ensino superior. No mercado laboral o sexo feminino já representa 44% da força de trabalho. Entre a População Economicamente Ativa (PEA) mais qualificada (com 11 anos ou mais de estudo) elas são maioria. Nas olimpíadas de Pequim, em 2008, as mulheres conquistaram 2 das 3 medalhas de ouro obtidas pelo Brasil. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) existem 5 milhões de eleitoras sobre os eleitores e, teoricamente, o sexo feminino sozinho é capaz de definir qualquer eleição (Alves e Correa, 2009).

Por tudo isto, pode-se dizer que o Brasil está passando por um longo processo de despatriarcalização. Atitudes patriarcais ainda estão presentes na sociedade e, provavelmente, vão continuar como manifestações arraigadas na cultura nacional. Mas tais atitudes são cada vez mais consideradas ilegítimas e ilegais. Podemos dizer que o Brasil passa por uma revolução feminina e a gestação de uma sociedade pós-patriarcal.

Referencias:
PENA, M.V.J. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina na constituição do sistema fabril. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.  
PITANGUY, J., MIRANDA, D. As mulheres e os direitos humanos. In: PITANGUY, J. e BARSTED, L.L. O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília, Unifem, Fundação Ford, Cepia, 2006
ALVES, J.E.D, CORREA, S. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. In: ABEP, Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo, ABEP/UNFPA, Campinas, 2009. Disponível em:
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=854&nivel=1

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José Eustáquio Diniz Alves