Futebol By Rafael Reinehr / Share 0 Tweet O negão Inácio tinha nos chamado no seu quarto. Todos fizeram cortes nos dedos. Nem vi direito onde ele guardou o sangue do nosso time porque ele saiu na corrida para o levar ainda vivo para um Pai de Santo lá de Bagé. No dia seguinte, podíamos sair da segunda divisão se ganhássemos do Ipiranga […] O negão Inácio tinha nos chamado no seu quarto. Todos fizeram cortes nos dedos. Nem vi direito onde ele guardou o sangue do nosso time porque ele saiu na corrida para o levar ainda vivo para um Pai de Santo lá de Bagé. No dia seguinte, podíamos sair da segunda divisão se ganhássemos do Ipiranga de Erechim – casualmente meu ex-time – no Estrela d`Alva. No quarto, enquanto dava meu sangue, tremia e lágrimas de arrependimento me vinham aos olhos. Foda. Os companheiros me abraçaram, pensando que eu estava emocionado com a demonstração de união que estávamos fazendo. Que nada, eu estava apavorado mesmo, porque, desde o dia anterior, era o traíra do grupo. Eu era um dos caras mais importantes do time. Tinha sido formado pelo Internacional de Porto Alegre, onde sempre fora reserva nas categorias de base. Fiquei lá dos 12 aos 18 anos, quando comecei a rodar pelo interior. Além do mais, tinha segundo grau completo e, aos 24 anos, era o capitão do time. O resto do pessoal era tudo quinta série, por aí. Apenas eu sabia falar com a imprensa. Dava mais entrevistas e aparecia mais do que os outros, mesmo medindo 1,60m. Eu era o baixinho que fazia a ligação entre o meio de campo e o ataque. Quer dizer, jogava em posição de craque, mas não era o caso. Tinha alguma habilidade e batia as faltas, pênaltis e escanteios do time, só que passava mais da metade do tempo machucado. Mas não naquele ano. Como o Enzo dizia na escola, aquele era o ano do seu pai. Eu ficava todo orgulhoso, pois tudo o que faço é para ele. Ganhava dois mil por mês no Guarani e os caras do Ipiranga me ofereceram vinte para errar todos os escanteios e faltas na decisão. Pênaltis também, se acontecessem. Eu estava em pânico com esta possibilidade – achava que era impossível errar o gol num pênalti. Se eu treinava diariamente, porra, como ia fazer para bater embaixo da bola a fim de mandá-la para fora do estádio? E eu sempre batia colocadinho, com jeito. Que merda. Só sei que pedi o dinheiro adiantado, pois depois eles sumiriam. Como eu tinha fama de sério e confiável, me deram a grana em dinheiro, na hora. Tinha que aceitar a grana. Havia o Enzo. O guri passava mais tempo com minha mãe em São Gabriel do que comigo e eu precisava ganhar mais para ter uma empregada em casa. Ainda bem que São Gabriel era perto e eu o visitava com freqüência. Eu pagava todas as contas dele, mas não podia morar junto porque ele tinha quatro anos e eu era sozinho em Bagé. Não podia ficar abandonado no meu apartamento durante as concentrações e viagens, né? Mas eu queria criar meu filho, como acho que é o normal de se fazer. Enzo tinha nascido em Erechim, quando eu tinha 20 anos. Agora já tinha quatro e era um baita homem. Quando a Lidiane deixou ele lá em casa, era uma coisinha de nada. Lidiane trabalhava na zona de Erechim e eu sempre ia com ela quando ganhávamos um jogo no Ipiranga. Parte do prêmio pela vitória ia para a diversão e eu gostava da Lidiane. Sempre a procurava. Hoje eu sei que ela nem podia trabalhar, porque era de menor: tinha só 15 anos. Um dia, depois de um sumiço grande, ela apareceu no meu apartamento com o Enzo. Sei lá como descobriu meu endereço. Disse para eu pegar meu filho. Olhei para ele, examinei bem. Era a minha cara. Meu filho. Perguntei que nome ela tinha dado e ela respondeu: – Aléquisei. – Porra, não podia ter posto nome de gente? Brigamos. Foi uma cena. Ela foi embora, disse que não tinha saco pra filho. Fiquei com o guri, é óbvio. Minha mãe quis saber da certidão. Procurei a Lidiane e ela não sabia onde estava. Fomos no cartório e acharam Alekisei Silva, filho de Lidiane Santos Silva e de pai desconhecido. Que merda. Pedi pro meu empresário achar um advogado para mudar o documento. Ele tinha pai, porra. E mudei seu nome para Enzo. Aquilo me custou caríssimo, mas consegui a tal retificação. Nunca mais vi Lidiane. Por que Enzo? Ouvi em algum lugar que Zidane tinha um filho com este nome. O motivo era homenagear seu amigaço Francescoli, Enzo Francescoli, um grande jogador uruguaio. Como achei bacana e tanto Zidane como Francescoli jogavam na minha posição, resolvi imitar. Além do mais, Enzo é um nome bonito, diferente. E então lá estava eu, o traíra chorão. Dormi mal aquela noite, sonhei que teria que errar três pênaltis como o Palermo. Acordei cedo com as buzinas e os foguetes dos bageenses. A cidade estava mobilizada para o jogo das 15h30, que poderia levá-la de volta à Primeira Divisão gaúcha. E eu estava assustado. A rádio da cidade veio atrás de uma entrevista e eu disse que respeitávamos o adversário e que estávamos preparados a vitória, já que o empate classificava o Ipiranga. Depois perguntaram o que eu sentia ao enfrentar meu ex-time, se havia algum sentimento de vingança ou mágoa e eu respondia que nada disso, hoje eu estou no Guarani e sou profissional. O Ipiranga é um adversário como outro qualquer e devemos fazer tudo para vencer e classificar o Guarani. Terminaram a entrevista dizendo aos ouvintes que o capitão estava sério e concentrado, só pensando no compromisso das quinze horas e trinta minutos e na necessidade de vitória. Me elogiaram. Merda. Era pavor, não profissionalismo. Veio o jogo. Quando o árbitro chamou os capitães, notei um risinho na cara de Marcão, capitão do Ipiranga e meu ex-companheiro. Ele conhecia Enzo, minha mãe e talvez até Lidiane. Permaneci sério, com aquela cara de inimigo que sabe o que quer. Será que ele sabia do trato? Fiquei desconfiado e preocupado, porque Marcão era um boca-grande. O jogo começou e eu fingia jogar. Recebia a bola, tentava o drible, mas sempre jogava a bola nas pernas dos marcadores. Quando lançava um de nossos atacantes, errava e eles me motivavam aplaudindo, depois de ver a bola perder-se pela linha de fundo. Batia as faltas e escanteios bem abertos, para não dar chance a nossos cabeceadores. Pedia desculpas. 0 x 0. No intervalo, o professor veio falar comigo em particular, perguntando se eu estava muito nervoso. – Não, isso não, estou mal no jogo, meio enjoado. – Marquinhos, isso é de fundo nervoso. Agora, olha bem para mim, olho no olho. Obedeci. – Marquinhos, se tu fraqueja, estamos mortos. A defesa tá bem. Eu preciso de um contra-ataque bem organizado, de uma falta bem batida para mandar esses caras pra puta que o pariu. Cara, eles te dispensaram no ano passado, tu quer dar razão a eles? Marquinhos, eu preciso de um bom lance e fim, tá? Baixinho, pensa no teu filho que deve estar ouvindo o jogo em São Gabriel. Faz por ele, pelamordedeus! Estávamos voltando para o segundo tempo e, ainda no túnel, lembrei do que tinha dito o pediatra do Enzo. – Esse guri é muito grande, vai ter 1,90m, no mínimo! Eu achei que ele estava brincando, mas agora me dava conta que o guri era enorme mesmo e eu um tampinha. Senti meu estômago contrair-se ao pensar que ele poderia não ser meu filho e em Lidiane, aquela vaca que dava mais que xuxu na cerca. Estava na cara o que o pediatra estava me dizendo. E ele tinha cabelos lisos, escorridos, como ninguém na minha família e nem Lidiane tem… E agora sou um traíra. Mas que merda de vida, meu Deus. Na primeira bola que recebi no segundo tempo, veio um volante por trás e bateu com seu peito em minhas costas com tanta força que voei longe. Fiquei puto com aquilo. Na jogada seguinte, dei-lhe uma tesoura com a finalidade de tirá-lo de campo. Ele reagiu: – Quer me quebrar o joelho, seu filha-da-puta? – Filha da puta é a tua mãe, desgraçado. Vai tomar no olho do teu cu, seu bosta. Vou te quebra, porra! O juiz interpôs-se e me deu o cartão amarelo, apesar de que eu não parava de gritar, ofendendo as mães do pessoal do Ipiranga. Estava transtornado. Então, resolvi jogar. Só que estava tão puto que fazia as coisas piores ainda. Marcão me olhava e sorria, como se eu fosse um ator prestes a receber um Oscar. Mais para o fim do jogo, dei-lhe um cotovelaço, mas errei. Marcão passou a mão na minha cabeça e me disse com carinho: – Te conforma com a segundona, nanico. E riu. Eu mandei ele se foder. No final da partida, fiz um lançamento para nosso centroavante, que tomou uma falta na boca da área. Ele pegou a bola e me entregou. – É a bola do jogo. Faz o gol, baixinho. Eu nem via nada direito. Procurei o Marcão na barreira e ele sorria abertamente para mim. Sim, ele sabia da Lidiane, do pagamento, de tudo. Sabia, enfim, que eu era um merda. Coloquei a bola no local indicado pelo árbitro e tomei distância, determinado a mandar tudo à puta que os pariu. Só que minha cabeça era aquele tumulto — pensei no Enzo ouvindo o jogo, na minha mãe, no cara me entregando a grana, no professor me suplicando para jogar melhor e em toda aquela massa que estava fazendo barulho desde a manhã. Decidi bater pelo lado da barreira, rente à cabeça do último homem, forte, para fora. Corri para a bola e chutei. O estádio explodiu em comemoração. Eu saí correndo como um louco em direção à arquibancada, pois, enfim, era o herói do dia. Depois do jogo e de ter erguido a taça, toda a cidade parecia estar dentro de nosso vestiário, todos queriam me tocar, falar comigo, me abraçar. Eu sorria, mas tinha certeza de que, assim que ficasse sozinho, levaria um tiro ou uma facada. Tinha que dar um jeito de chegar até meu carro para fugir da cidade. Dei entrevistas para as rádios locais e para o pessoal de Erechim, estes com cara de luto. Eu sabia que seria morto depois daquilo; afinal, enganara os caras, roubando vinte pilas deles. Eu não tinha culpa se a barreira pulara. No último segundo, decidi chutar forte e rasteiro, para que a bola batesse nela, só que a barreira pulou e a bola passou por baixo daqueles deficientes mentais do Ipiranga. Entrou no canto desprotegido pelo goleiro, que nada pôde fazer. – Muita frieza e precisão na cobrança de falta, Marquinhos! – Marquinhos, você não fez tão boa partida quanto as anteriores, mas craque é craque e você decidiu o jogo com categoria. – Marquinhos, você sentiu que a barreira pularia? – Marquinhos, a sofrida cidade de Bagé, que há anos convive com a estiagem e com o racionamento de água, tem em ti um grande herói. Parabéns! – Capitão Marquinhos, por favor, erga a taça novamente para a grande torcida do Guarani, essa massa que delira com a ascensão à Primeira Divisão de nosso estado! E eu pensando em minha morte. Depois da festa no estádio, houve um churrasco com cerveja pago pelos diretores do clube. Cheguei meio bêbado a meu Chevette Junior acompanhado de dois colegas. Entramos, deixei-os em casa e fui para a estrada. Amanhecia quando cheguei em São Gabriel. Recebi o abraço da mãe, que chorava dizendo – se teu pai estivesse vivo, ficaria tão orgulhoso de ti… E lágrimas. Eu não agüentava mais. Era um carrossel de emoções. – Mãe, eu vou viajar. Sair de férias. Vou para Floripa com o Enzo. Depois de fazer as malas dele, dei um jeito de ir para o Uruguai. Passei de novo por Bagé, mas não pararia ali nem que me cobrissem de ouro. Me senti melhor quando atravessei a fronteira em Aceguá. Na noite do mesmo dia, deixei o carro num estacionamento em Colônia e atravessei o Rio da Prata de buquebus. Chegando à Buenos Aires, fomos para a rodoviária. Enzo parecia estar gostando de viajar comigo. Estava tranqüilo. Olhei os destinos dos ônibus e escolhi uma cidade que não conhecia: Ushuaia. Viajamos a noite inteira, eu e Enzo. Estávamos felizes. Eu e meu filho, ele com seu pai. Perto do meio-dia, estava ficando cada vez mais frio e nada de chegarmos à Ushuaia. Pedi para trocar de lugar com Enzo, fui sentar-me na janela. Não entendia muito bem onde estava, mas a vegetação era desconhecida e esfriava demais. Paramos e comprei um livrinho para turistas, Conozca la Argentina. Procurei por Ushuaia e a primeira propaganda que vi da cidade foi: visite el Museo del Fin del Mundo. Meu Deus. Depois havia outras que falavam em Patagônia, extremo sul e fotos de pingüins. Estaria indo para o Pólo Sul? Será que veria ursos brancos por lá? Num cantinho informavam a distância de Buenos Aires: 3260 Km. Comprei casacos e blusões. Mais dois dias e chegamos. Era lindo, mas fiquei estarrecido quando entramos na cidade pela avenida Heróes de Malvinas. Estaria perto das Ilhas? Olhei no mapa. Putz, estávamos bem ao lado. Claro, gastei todo o dinheiro do pessoal de Erechim em hotéis e em contatos com meu empresário. Contei-lhe o acontecido e ouvi sua resposta: – Eu tenho direito a 20% de tudo o que tu recebe, lembra? Enzo adorou aquela Floripa quase vazia. Enturmou-se com outros meninos e eu os observava brincar. Quis saber as idades de cada um deles e concluí que meu filho seria muito alto, mas muito alto mesmo. Meu empresário conseguiu um outro empresário a nível internacional e, depois de congelar por cinco semanas, me conseguiram um clube, mas me morderam em 75% do valor da negociação. O novo empresário me acompanhou até o novo clube. De novo, lá era frio, mas também era bonito. Antes de me despedir dele, pedi-lhe que falasse com o médico do clube e, no dia seguinte, eu e Enzo fomos a uma clínica para o exame de sangue. Lembrei de Inácio. Saudades dele, aquela mandinga deu certo. E como! Hoje, recebi no clube um envelope com o resultado, só que não entendo nada de norueguês. Saí do treino e busquei Enzo para um cinema. Nunca tinha entrado num cinema tão pequeno. Era um filme espanhol meio infantil, El Laberinto del Fauno, e achei que, como em nossa temporada entre os pingüins falávamos a língua, entenderíamos tudo. Tomei um susto quando vi que estava dublado naquela língua deles… Rimos muito e eu ia narrando em seu ouvido o que os personagens diziam. Tudo inventado, claro. Voltamos para a casa a pé. Ele pediu para jantar o que mais gosta de comer: ovos mexidos e purê de batata. Entrei num supermercado para comprar. Ali, era fácil. Bastava pegar o que quisesse e, mesmo na hora de pagar, eu não precisava falar nada: era só olhar a soma na máquina e entregar o dinheiro. As mulheres daqui são bonitas. Digo pra vocês, ainda vou comer uma dessas loironas. Vou casar, até. Quando estávamos chegando em casa, lembrei do envelope. Joguei num lixo da rua. Se crescer muito é porque cuidei bem dele, porra. Leia mais em: http://miltonribeiro.opensadorselvagem.org/marquinhos-e-enzo-o-grande/